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A construção da identidade em O Vendedor de Passados*

Foto do escritor: universos.textosuniversos.textos

Atualizado: 3 de jul. de 2018

Neste texto, analiso a construção da identidade no livro do escritor angolano José Eduardo Agualusa.
Fonte: fnac.pt

(Particularmente, não gosto da capa que faz alusão ao filme brasileiro de mesmo nome, já que a tradução fílmica é um tanto diferente.)


Neste texto, analisei a constituição de passado feita pelo autor José Eduardo Agualusa, na narrativa ficcional de O Vendedor de Passados, como constituição de uma identidade que pretende ser nacional devido ao momento vivido pelos países africanos de língua portuguesa, ou seja, a fase pós-independência de Portugal. O relato é feito pela ótica de uma osga e apresenta a vida de dois personagens: Félix Ventura e José Buchman, o primeiro sendo quem vende passados para seus clientes, e o segundo um indivíduo que comprou um desses passados reinventados. A partir de uma relação sobre a questão da memória e da identidade na constituição da vida desses personagens, buscar-se-á refletir sobre a narrativa como metaficção historiográfica e como afirmação de identidade.


PALAVRAS-CHAVE: Passado; Memória; Identidade; Literatura dos PALOP.

A narrativa de Agualusa permite ler a história de Félix, personagem que vende passados. A partir de fatos e fotografias de diferentes personalidades e também de pessoas comuns, algumas presentes no imaginário coletivo – como Machado de Assis, Cruz e Souza, entre outras – e algumas inventadas, Félix utiliza-as para recriar a vida daqueles que o procuram como clientes. Assim, essas pessoas ‘ganham’ vida nova, rostos e nomes novos para completar a árvore genealógica de suas famílias.

O relato é feito pela ótica de uma osga[1] que vive na casa de Félix Ventura durante praticamente todo o tempo da narrativa, para no fim deslocar-se à casa de José Buchman, um dos muitos clientes de Félix, e depois ser dada como morta, já que o último capítulo é escrito por Félix. A partir do olhar da osga, pode-se ler sobre as mudanças ocorridas na vida e na identidade do personagem José, relacionadas com a questão da genealogia, dos antepassados e das histórias desses. Também é relatado o percurso da vida de Félix e um pouco das pessoas que frequentam sua casa, entre elas uma namorada chamada Ângela Lúcia e os clientes, sendo que alguns chamam a atenção do narrador e sua visita recebe destaque na narrativa.

A partir dessa análise, reflete-se sobre a questão do uso e da manipulação da memória como construção de uma identidade aceitável, uma identidade que possa permitir ao indivíduo um sentido mais enaltecedor para a sua presença e interferência no mundo. Essa reflexão também se deve ao fato de haver entre os Países Africanos de Língua Portuguesa – os PALOP – um processo de independência de Portugal num período recente, pós anos 70.

Ao deparar-se com o título O Vendedor de Passados, o leitor logo é remetido à ideia de que o texto trabalhará a questão do passado, ou mais precisamente, a questão de alguém que vende o passado. Mas, daí pensa-se: como alguém pode vender um passado, como será esse passado vendido? A partir deste questionamento, busca-se entender como a questão do passado é construída ao longo da narrativa; se os fatos históricos são recuperados podendo-se classificar a escrita literária nesse caso como uma versão de fatos ocorridos em determinado lugar ou se a narrativa constitui-se de invenções e fantasias.

Para tanto, pode-se considerar a análise de Pestana, ao falar sobre a questão sociopolítica de Angola, e declarar que o que Agualusa faz é uma reinvenção do passado:

[...] há um processo acelerado de distinção de classes que se afastou do sistema de privilégio nomenclaturista do Estado revolucionário, que passa pela manutenção de um quadro de dominação e de desigualdade de predação e também por um processo de interiorização da condição de classe, isto é, pelo desenvolvimento e partilha de um sentimento de pertença. (...) Este processo de interiorização vai até ao ponto da própria reinvenção do passado, cuja expressão literária se encontra na ficção de José Eduardo Agualusa, no seu último romance, O Vendedor de Passados (PESTANA, 2004).

A partir dessa conclusão do autor, pode-se perguntar como ocorre a reinvenção do passado e porque ela ocorre. Antes de avançar neste aspecto, observa-se logo no início do primeiro capítulo uma canção popular que reafirma esta questão – de um passado realmente fantasiado:

[...] nada passa, nada expira [...] O passado é [...] um rio que dorme [...] e a memória uma mentira [...] multiforme. [...] Dormem do rio as águas [...] e em meu regaço dormem os dias [...] dormem [...] dormem as mágoas [...] as agonias, [...] dormem. [...] Nada passa, nada expira [...] O passado é [...] um rio adormecido [...] parece morto, mal respira [...] acorda-o e saltará [...] num alarido (AGUALUSA, 20014, p. 4).

A partir dessa canção a ideia de que o passado pode ser recuperado – o passado é um rio que dorme, mas acorda-o e saltará num alarido –, recuperação que se faz através da memória. A memória, vista como uma mentira multiforme. Consequentemente, o passado é uma mentira, uma reinvenção, ou uma fantasia. Corroborando com essa ideia trazida por Agualusa através dessa canção, tem-se que “recordar é configurar para o presente um acontecimento do passado e criar uma estratégia para o futuro” (CANDAU, 2012, p. 31). Neste sentido, a memória como uma forma de trazer para o presente algo que já aconteceu, mas esse fato narrado, lembrado, é diferente do vivido, pois está marcado por outras vivências e concepções de vida do indivíduo que narra.

Ainda, reiterando esta questão do passado a ser reinventado, deve-se reconhecer que existem mudanças históricas no sentido do passado (JELIN, 2002, p. 2). Já que as memórias registradas hoje sobre um fato do passado estão relacionadas com o contexto histórico e social do momento, além de contar com interferências do repertório de leituras e críticas de quem as produz. Sendo que o fato vivido nunca é totalmente reproduzido através da narrativa posterior, tanto que seu sentido será distinto.

Passado um tempo – que permite estabelecer um mínimo de distância entre passado e presente – as interpretações alternativas (inclusive rivais) desse passado recente e de sua memória começam a ocupar um lugar central nos debates culturais e políticos (JELIN, 2002, p. 5). “[...] É apenas ‘à medida que as lembranças podem ser dotadas de um sentido e vinculadas ao presente’ que a memória humana funciona, apoiando-se sobre a imaginação” (CANDAU, 2012, p. 62). Assim, tem-se a questão de que “[...] o que faz a identidade de uma pessoa não pode jamais ser realmente ou totalmente rememorado [...]” (CANDAU, 2012, p. 70).

Para o narrador, a vida no país “[...] é a vida em estado de embriaguez [...]”. A narrativa se passa em Angola, país africano de língua portuguesa, ex-colônia de Portugal. O processo de independência deste e de outros países africanos ocorre a partir dos anos 70 do século XX e a narrativa literária de Agualusa está inserida no período pós-colonial recente. Então, o estado de embriaguez ao qual o narrador remete pode ser associado ao período em que os indivíduos ainda estão perdidos em relação a sua identidade: serão eles africanos? Serão portugueses? Onde inserir uma nação dentro da África que possui como língua oficial o português? Como fazer estes indivíduos esquecerem seu passado de guerra, submissão, perda dos idiomas africanos para se reinventarem africanos falantes de língua portuguesa?

Luanda está cheia de pessoas que parecem muito lúcidas e de repente desatam a falar línguas impossíveis, ou a chorar sem motivo aparente, ou a rir, ou a praguejar. Algumas fazem tudo isso ao mesmo tempo. Umas julgam que estão mortas. Outras estão mesmo mortas e ainda ninguém teve coragem de as informar. Umas acreditam que podem voar. Outras acreditam tanto nisso que realmente voam. É uma feira de loucos, esta cidade, há por aí, por essas ruas em escombros, por esses musseques em volta, patologias que ainda nem sequer estão catalogadas (AGUALUSA, 2004, p. 162).

Assim, para tentar dar conta de uma nova identidade nacional, Agualusa narra a história de Félix, um homem que guarda inúmeras coisas que o possam auxiliar na tarefa de fornecer a seus clientes novas histórias de vida:

[...] gosta de gravar noticiários, acontecimentos políticos importantes, tudo o que lhe possa ser útil um dia. As cassetes estão ordenadas por ordem alfabética, segundo o nome da personalidade ou do acontecimento a que se referem [...] (AGUALUSA, 2004, p. 15).

Pode-se entender que Félix – o vendedor de passados, ou o “assegurador de um passado melhor para seus filhos” (AGUALUSA, 2004, p. 16) – é capaz de construir um passado diferente para os filhos da nação, a fim de que a identidade destes pudesse ser mais honrosa, menos feia – sem as manchas de sangue, guerras, opressão. Em sua tarefa:

[...] procurava-o, explicou, toda uma classe, a nova burguesia. Eram empresários, ministros, fazendeiros, camanguistas, generais, gente, enfim, com o futuro assegurado. Falta a essas pessoas um bom passado, ancestrais ilustres, pergaminhos. Resumindo: um nome que ressoe a nobreza e a cultura. Ele vende-lhes um passado novo em folha. Traça-lhes a árvore genealógica. Dá-lhes as fotografias dos avôs e bisavôs, cavalheiros de fina estampa, senhoras do tempo antigo. Os empresários, os ministros, gostariam de ter como tias aquelas senhoras, prosseguiu, apontando os retratos nas paredes – velhas donas de panos, legítimas bessanganas –, gostariam de ter um avô com o porte ilustre de um Machado de Assis, de um Cruz e Souza, de um Alexandre Dumas, e ele vende-lhes esse sonho singelo (AGUALUSA, 2004, p. 17).

Através de Félix Ventura, Agualusa explicita a ficcionalização, a criação de um passado, algo melhor, um passado de coisas boas, de pessoas importantes, fatos que possam orgulhar a quem o procura. Seus clientes, em busca de outras histórias para suas vidas, também queriam uma nova identidade:

[...] [o estrangeiro] explicou que pretendia fixar-se no país. Queria mais do que um passado decente, do que uma família numerosa, tios e tias, primos e primas, sobrinhos e sobrinhas, avós e avôs, inclusive duas ou três bessanganas, embora já todos mortos, naturalmente, ou a viverem no exílio, queria mais do que retratos e relatos. Precisava de um novo nome, e de documentos nacionais, autênticos, que dessem testemunho dessa identidade (AGUALUSA, 2004, p. 18).

Ao fim, todos os clientes conseguiam o que queriam. O estrangeiro, por sua vez, ganhou o nome de José Buchman, natural da Chibia. Junto com documentos novos, estavam algumas fotografias de pessoas que Félix explicou-lhe quem eram: “seus” avós, tios, pais, bisavós, e a história de cada um (AGUALUSA, 2004, pp. 41-42).

A partir desse novo passado, José Buchman começa a mudar perante os olhos do narrador, algo da mesma natureza poderosa das metamorfoses vem operando no seu íntimo (AGUALUSA, 2004, p. 59). Para o narrador:

[...] podem argumentar que todos estamos em constante mutação. Sim, também eu não sou o mesmo de ontem. A única coisa que em mim não muda é o meu passado: a memória do meu passado humano. O passado costuma ser estável, está sempre lá, belo ou terrível, e lá ficará para sempre. (Eu acreditava nisto antes de conhecer Félix Ventura) (AGUALUSA, 2004, p. 59).

A ideia de passado imutável defendida pelo narrador sofre uma dúvida provocada pela profissão de Félix. Poder ter um passado bom contagiou também o narrador, e tê-lo indica que o presente também será bom, haverá orgulho por parte de quem estiver ligado a fatos rememoráveis enquanto felizes e honrosos: “[...] o que falta a essas pessoas é um bom passado (AGUALUSA, 2004, p. 17)”. Pode-se relacionar essa questão com a análise de Candau sobre o passado vivido que não condiz totalmente com o passado narrado, já que o momento da narração é contagiado pelas muitas experiências aquém do fato vivenciado que ocorreram na vida daquele indivíduo que narra. Ficcionalizar o passado e fantasiá-lo, a fim de contar apenas as coisas boas, também é parte da natureza de quem relata o que viveu.

Por outro lado, “[...] a memória e a identidade estão indissoluvelmente ligadas” (CANDAU, 2012, p. 10). De tal modo que os clientes de Félix podiam estar buscando uma identidade que melhor lhes aprouvesse. Já que a memória anterior ao novo passado provavelmente não trazia uma identidade à qual pudessem se sentir ligados.

O novo passado provocava inclusive mudanças em quem o havia comprado. No caso de Buchman, a osga acrescenta:

[...] perdeu, vem perdendo, aquela pronúncia entre eslava e brasileira, meio doce, meio sibilante, que ao princípio tanto me desconcertou. Serve-se agora de um ritmo luandense, a condizer com as camisas de seda estampada e os sapatos desportivos que passou a vestir. Acho-o também mais expansivo. A rir, é já angolano. Além disso tirou o bigode. Ficou mais jovem (AGUALUSA, 2004, pp. 59-60).

Também, a declaração do narrador de que a verdade é uma superstição (AGUALUSA, 2004, p. 75) está relacionada à perspectiva de que reinventar/criar um novo passado, um passado de orgulho, faz bem, ou, não faz mal nenhum, pelo simples fato de que ouvir Félix falar de sua infância traz-lhe inveja, uma infância tão bem contada como se tivesse realmente sido vivida (AGUALUSA, 2004, p. 94): “[...] pode ser falsa; ainda assim a invejo” (AGUALUSA, 2004, p. 97).

Voltando à questão da ficcionalização, da criação/recriação do passado feita na figura do personagem Félix Ventura, podemos comprovar que inclusive sua própria história também tem um pouco (ou senão toda ela seja) de reinvenção, como no caso da infância. Numa de suas conversas com a namorada Ângela Lúcia, tem-se que:

- O teu avô, aquele ali, o do retrato, é muito parecido com o Frederick Douglass. [...] Félix olhou-a derrotado: [...] - Ah, reconheceste-o? O que queres?, chama-se a isto deformação profissional. Crio enredos por ofício. Efabulo tanto, ao longo do dia, e com tal entusiasmo, que por vezes chego à noite perdido no labirinto das minhas próprias fantasias. Sim, Frederick Douglass, comprei esse retrato numa feira de rua, em Nova Iorque. Mas quem trouxe para aqui o cadeirão onde agora estás sentada foi de facto um dos meus bisavôs, ou melhor, o avô do meu pai adoptivo. Excluindo o retrato, a história que te contei é autêntica. Enfim, pelo menos tanto quanto me recorde. Sei que tenho por vezes recordações falsas – todos temos, não é assim?, os psicólogos estudaram isso – mas penso que esta é verídica (AGUALUSA, 2004, pp. 125-126).

Como se nem o próprio Félix lembrasse sua história original, seu verdadeiro passado, de tantas que já foram as vezes que ele contou, ou pensou, o seu passado irreal, recriado. As coisas boas – sim, porque para que se recrie um passado é necessário que ele seja recriado para melhor, ou seja, criam-se coisas boas em detrimento das coisas ruins – são as que Félix guardou na sua memória, tanto que ele nem sabe mais se estas coisas lembradas são as reais ou as recriadas, pois ele próprio declara que pensa que esta é verídica. “[...] Devemos contá-la, fazer uma ‘narrativa de identidade’, um ‘discurso de apresentação de si’ que terá a forma de uma ‘totalidade significante’” (CANDAU, 2012, p. 71).

A memória que registramos hoje não contempla exatamente o momento vivido, nem será a mesma em diferentes momentos da vida de um indivíduo. A narrativa de hoje não se assemelhará à anterior, ainda que o fato contado seja o mesmo. “É o distanciamento do passado que o permite reconstruir para fazer uma mistura complexa de história e ficção, de verdade factual e verdade estética” (CANDAU, 2012, p. 71). Ao se auto narrar, o indivíduo não inventaria o que viveu, mas aquilo que ficou do que viveu (CANDAU, 2012, p. 71). Há uma ordem de acontecimentos colocada em pauta:

[...] [aquilo que] julga significativo no momento mesmo da narrativa: restituições, ajustes, invenções, modificações, simplificações, ‘sublimações’, esquematizações, esquecimentos, censuras, resistências, não ditos, recusas, ‘vida sonhada’, ancoragens, interpretações e reinterpretações constituem a trama desse ato de memória que é sempre uma excelente ilustração das estratégias identitárias que operam em toda narrativa (CANDAU, 2012, p. 71).

No caso de Félix, o passado é reinventado em algum momento de sua vida, modificando-se completamente, ou parcialmente – não se sabe ao certo – mas ainda assim, para o novo passado haverá sempre os mesmos conflitos entre lembrança e esquecimento. Ainda, “[...] seria errôneo avaliar essa identidade narrativa a partir de critérios de verdadeiro ou falso [...] [já que] há uma verdade do sujeito [...]” (CANDAU, 2012, p. 72). Pois, “[...] a literatura é a maneira que um verdadeiro mentiroso tem para se fazer aceitar socialmente” (AGUALUSA, 2004, p. 75).

O capítulo intitulado (personagens reais) (AGUALUSA, 2004, p. 137) narra sobre um livro que Félix Ventura está escrevendo (A Vida Verdadeira de Um Combatente), para o Ministro, no qual ele costura a realidade com a ficção, habilmente, minuciosamente, de forma a respeitar datas e factos históricos (AGUALUSA, 2004, p. 139), ou seja, ao costurar a realidade com a ficção, ele abala o passado, preenchendo as lacunas com a ficção – características da metaficção historiográfica.

Observa-se que surge na Modernidade a metaficção historiográfica, consequência da nova visão de literatura e história, maneira de fazer literatura que desestabiliza a história oficial e propõe novas versões (MENDONÇA; ALVES, s.d., p. 9-12). Há, assim, um ganho para ambas as ciências, pois os textos literários passam a ter valor humano histórico, além do valor estético (MENDONÇA; ALVES, s.d., p 10).

Em O Vendedor de Passados, a ficção é engrandecedora do passado, recriando um bom passado:

[...] assim que A Vida Verdadeira de Um Combatente for publicada, a história de Angola ganhará outra consistência, será mais História. O livro servirá de referência a futuras obras que tratem da luta de libertação nacional, dos anos conturbados que se seguiram à independência, do amplo movimento de democratização do país (AGUALUSA, 2004, p. 140).

O que Félix Ventura faz é quase que uma reversão de valores, ou seja, ele “torna positivo aquilo que até então era negativo, o que estava esquecido ou era motivo de vergonha recebe uma conotação positiva, tornando-se objeto de exaltação” (BERND, s.d.). Todo o passado triste e vergonhoso de Angola ganhará outra consistência, será mais História, algo mais belo, uma versão não contemplada na História, desestabilizando a História oficial, ou apresentando uma leitura crítica desta:

[...] essa nova modalidade de romance que trata da história, sem, no entanto, pretender ser história, já que se assenta no pacto da verossimilhança, quer apresentar, na maioria dos casos, uma releitura crítica da historia dita oficial, através de uma multiplicidade de pontos de vista (ESTEVES, 2004).

Percebe-se que tudo o que remete ao passado neste livro, é sempre bom, as coisas são coisas sempre boas. Como declara PESTANA (2004), Agualusa faz um exercício de reinvenção do passado em O Vendedor de Passados, ou apresentando uma leitura cuja exaltação era motivo de vergonha recebe uma conotação no passado!reinventando o passado de submissão e omissão pelo qual Angola passou para um passado de “desenvolvimento e sentimento de pertença”.

E, quando Félix Ventura conclui sua escritura em seu diário, o que coincide com o final do livro, dizendo ter feito um sonho (AGUALUSA, 2004, p. 199), percebe-se que realmente Agualusa quis passar a mensagem de que o passado de regime colonialista pode ser substituído por algo que todos desejam recordar, um passado de sonho, pois o sonho sempre é bom. E o que Angola viveu foi um pesadelo que não deve ser lembrado, pois se o hoje é reflexo do ontem, então, para que o hoje de Angola seja de desenvolvimento e dias melhores, o ontem deve ser motivador e incentivador de atitudes boas.

Pode-se atentar também para a questão do fazer Literatura ao longo dos tempos. Essa distinção tem total relação com o sujeito e sua percepção sobre o ser-no-mundo. Paralelo a essa questão, tem-se que “o dever de memória faz de cada um o historiador de si mesmo” (NORA, 1993, p.17), de tal modo que todo indivíduo passa a ter voz e vez na sociedade contemporânea. A partir do momento em que a História – antes vista como verdadeira e universal – não representa mais o eu particular, e esse eu pode ser tanto um indivíduo quanto um grupo, surge a vontade de se autorrelatar. Temporalmente, insere-se nos estudos pós-coloniais essa ideia de não aceitar o discurso do colonizador, daquele que faz a História, e trazer à tona versões múltiplas do mesmo acontecimento. Surge, assim, um locus enunciativo, ou seja, o lugar de onde se fala dizendo muito sobre quem fala (BHABHA, 2001, p. 228) e contrapondo a versão antes dita oficial.

De acordo com Grenoville “[...] el deseo de comprensión, la búsqueda de verdad implícita en esa vuelta hacia el pasado y la revisión de lo acontecido resultarán productivos sólo si se restablecen en un sentido eminentemente político desde el cual poder empezar a visualizar la posibilidad de transformación a futuro” (2010, p. 240).

Inserido num contexto múltiplo, ou seja, nascido indiano e residente nos Estados Unidos, além de ter passado por outros países durante sua formação acadêmica e profissional, Homi Bhabha busca refletir sobre o que seria uma narrativa da nação, enquanto esta é múltipla, dividida dentro de si mesma, composta por uma população heterogênea (BHABHA, 2001, p. 208). Assim, a nação seria “[...] um espaço liminar de significação, que é marcado internamente pelos discursos de minorias, pelas histórias heterogêneas de povos de disputa, por autoridades antagônicas e por locais tensos de diferença cultural” (BHABHA, 2001, p. 210).

A análise do autor está totalmente inserida num contexto pós-colonial de busca de uma identidade nacional permeada pela influência do colonizador e pelo desejo de manter viva a cultura local. No Brasil provavelmente não se tenha tantos conflitos de identidade, genericamente falando e pensando-se na época da independência e na relação com o surgimento das teorias pós-coloniais provindas, na grande maioria das vezes, de sujeitos inseridos em contextos africanos ou indianos. Apesar de estas reflexões teóricas serem datadas principalmente da metade do século XX em diante, elas serviram também para alavancar os estudos das minorias em nível internacional, já que levaram à percepção de que o discurso do outro – daquele que está à margem – pode ser sim carregado de memórias que servirão para contar a história da nação.

Nesse sentido, Grenoville salienta que:

[...] el espacio conformado por el conjunto de herencias del pasado no es siempre el mismo. Los acontecimientos que se rescatan en un determinado momento en detrimento de otros, que caen en el olvido, varían, así como también el sentido que se les asigna. Este espacio se constituye a partir de la acción retroactiva de la intencionalidad a futuro sobre las huellas que nos dejó el pasado. A su vez, el trabajo del recuerdo implica el tiempo del duelo, tiempo en el cual se debe dar la reconciliación con el objeto perdido entendiéndolo como “algo cumplido”, algo que “ha sido”. El pasado concebido de este modo se dirige al futuro reclamando el relato de lo acontecido (2010, p. 239).

Ainda, “[...] o presente da história do povo é [...] uma prática que destrói os princípios constantes da cultura nacional que tenta voltar a um passado nacional ‘verdadeiro’, frequentemente representado nas formas reificadas do realismo e do estereótipo” (BHABHA, 2001, p. 215). É nesse contexto que Bhabha define que

[...] é a partir dessa instabilidade de significação cultural que a cultura nacional vem a ser articulada como uma dialética de temporalidades diversas – moderna, colonial, pós-colonial, ‘nativa’ – que pode ser um conhecimento que se estabiliza em sua enunciação: ela é sempre contemporânea ao ato de recitação. É o ato presente que, a cada vez que ocorre, toma posição na temporalidade efêmera que habita o espaço entre o ‘eu vi’ e o ‘você ouvirá’ (2001, p. 215).

Nesse sentido, faz-se face à diferença cultural o discurso do sujeito dessa diferença que sempre é constituído a partir do locus do outro (BHABHA, 2001, p. 228), numa relação de constituição de identidade em relação à alteridade. Para o autor, é possível usar a “[...] palavra ‘rastros’ para sugerir um tipo particular de transformação discursiva interdisciplinar que a analítica da diferença cultural demanda” (BHABHA, 2001, p. 229). Entende-se, assim, o discurso de um sujeito como que formado por rastros da interdisciplinaridade cultural na qual este indivíduo está inserido.

É a partir dessa reflexão temporal sobre o momento no qual o indivíduo passa a ser um sujeito múltiplo – ex-colonizado, falante da língua do colonizador, subjugado por este, e inserido num contexto cultural de um grupo que existia pré-colonização – e a partir dessa multiplicidade de ‘eus’ esse ser precisa encontrar seu discurso é que podemos chegar à questão da presença da memória em diversos campos do saber. Enquanto historiador de si mesmo que dá voz a outras versões da história, o indivíduo passa a tentar criar uma identidade múltipla, sendo que esta identidade está sempre impregnada da memória dos fatos vividos.

A relação entre história, narrativa e literatura apresenta novas possibilidades de compreensão de memória e tempo:

[...] sendo assim, a temporalidade da história e a conexão com a vivência equivalem a uma vida histórica. A história de um povo, de uma cultura é desse modo transpassada pelas variações imaginativas de um escritor que, ao seduzir seu leitor na trama da narrativa, instaura uma reconfiguração do passado – não o seu texto original – pelo horizonte de expectativa do futuro a partir da experiência testemunhal de seus personagens. O que os leitores compreendem desta narrativa histórico-literária não seria a vida em si, que permanece um enigma; entretanto compreenderia os significados em que a vida se traduz ou se exprime, ou seja, as categorias da vida (TAVARES, 2012, p. 122).

No caso de Agualusa, a memória criada a partir da Literatura tenta dar conta da construção de uma identidade nacional que possa fazer o indivíduo se identificar com o outro, com aquilo que agora Angola é: um país complexo, múltiplo. Grenoville comenta que “[...] el “deber de memoria” tiene como finalidad mantener la identidad tanto colectiva como individual a lo largo del tiempo, conservar las huellas de los acontecimientos pasados y también honrar a las víctimas de la historia” (2010, p. 237). Ainda que o passado de colonizado possa trazer más lembranças, é preciso lembrar-se daqueles que lutaram pela independência do país, e pode-se transformar o ruim em bom. A Literatura já o faz:

[...] a memória é uma paisagem contemplada de um comboio em movimento. Vemos crescer por sobre as acácias a luz da madrugada, as aves debicando a manhã, como a um fruto. Vemos, além, um rio sereno e o arvoredo que o abraça. Vemos o gado pastando [...]. Vemos os lagos plácidos onde nadam os patos, [...]. São coisas que ocorrem diante dos nossos olhos, sabemos que são reais, mas estão longe, não as podemos tocar. Algumas já tão longe, e o comboio avança tão veloz, que não temos a certeza de que realmente aconteceram. Talvez as tenhamos sonhado. Já me falha a memória, dizemos, e foi apenas o céu que escureceu [...] (AGUALUSA, 2004, p. 153).

Essa reflexão do autor através das palavras do narrador indica uma percepção ao leitor de que o passado de Angola pode ter sido sonhado. As coisas ruins ficaram para trás. A memória, que é falha, pode também ter inventado as coisas tristes que se passaram. O futuro de Angola, esse sim deve ser promissor. Cada um, a nação inteira, duvidando de sua memória.


REFERÊNCIAS

AGUALUSA, José Eduardo. O vendedor de passados. Rio de Janeiro: Gryphus, 2004.

BERND, Zila. Literatura Negra. In: JOBIM, José Luis (org.). Palavras da Crítica: Tendências e Conceitos no Estudo da Literatura. Rio de Janeiro: Imago, Coleção Biblioteca Pierre Menard. s.d.

BHABHA, Homi. O local da cultura. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2001.

CANDAU, Jöel. Memória e Identidade. Tradução Maria Leticia Ferreira. São Paulo: Contexto, 2012.

ESTEVES, Antonio R. A literatura conta a história: um caso de metaficção historiográfica espanhola contemporânea. In: Congresso Brasileiro de Hispanistas, 3, ufsc, 2004.

GRENOVILLE, C. Memoria y narración. Los modos de re-construcción del passado. Andamios. Revista de Investigación Social, vol. 7, núm. 13, mayo-agosto, , pp. 233-257, Universidad Autónoma de la Ciudad de México, 2010.

IOZZI, Adriana. Da vanguarda ao pós-moderno: Ítalo Calvino e a literatura renovada. In: CONGRESSO INTERNACIONAL DA ASSOCIAÇÃO PORTUGUESA DE LITERATURA COMPARADA, 4. s.d.

JELIN, Elizabeth. Los trabajos de la memoria. SSRC: Madrid, 2002.

MENDONÇA, Carlos V. C.; ALVES, Gabriela Santos. Da alegria e da angústia de diluir fronteiras: o diálogo entre a história e a literatura. In: www.historia.uff.br/cantareira. s.d.

NORA, Pierre. Entre Memória e História: A problemática dos lugares. Tradução de Yara Aun Khoury. Projeto História. São Paulo, dez 1993. In: Les lieux de mémoire. I La République, Paris, Gallimard, 1984. pp. XVIII-XLII.

PESTANA, Nelson. A classe dirigente e o poder em Angola. Congresso Luso-Afro-Brasileiro de Ciências Sociais, 8, Universidade de Coimbra, 2004.

TAVARES, L.F. Memória e Literatura: uma perspectiva hermenêutica. VÉRTICES, Campos dos Goytacazes/ RJ, v.14, n. 2, p. 117-128, maio/ago, 2012.

[1] Réptil que vive em esconderijos sombrios.


*O texto foi originalmente publicado na Revista Nonada, v.2, p.143, 2016. Disponível em <http://seer.uniritter.edu.br/index.php/nonada/article/view/991>. Com co-autoria da professora Dra. Tatiana Lebedeff.

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