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Uma análise comparativa entre obras de Vitor Ramil, brasileiro, e Juan José Saer, argentino*

Foto do escritor: universos.textosuniversos.textos

O presente texto busca apresentar uma reflexão em torno da obra artístico-literária do cantor, compositor e escritor gaúcho Vitor Ramil, e da obra do escritor argentino Juan José Saer. Em ambos, o cenário pampeano e as expressões de uma cultura híbrida de fronteira são predominantes. Paisagens culturais, ritmos musicais compartilhados, registros da cidade em diferentes matizes e temporalidades, são expressões desses universos representados por Ramil e Saer, representações da construção discursiva de uma identidade que ultrapassa as noções de latinoamericanidade, ao mesmo tempo em que reafirma lugares culturais comuns. Analisam-se, de Ramil, o ensaio “A Estética do Frio”, a narrativa em prosa Satolep e o disco Délibáb, e, de Saer, o ensaio e “El río sin orillas”, a narrativa em prosa O Enteado e o livro de poemas El arte de narrar.


PALAVRAS-CHAVE: Literatura latino-americana; Literatura Comparada; Memória; Identidade.

1. Introdução

Refletir sobre os modos de fazer Literatura no mundo contemporâneo remete a pensar o lugar comum do sujeito e seu papel na sociedade em que vivemos. Pensar a identidade na contemporaneidade é remeter aos teóricos pós-colonialistas que destacam a importância da questão da enunciação, do lugar de onde se fala. Para Edward Said (1995), a leitura não pode mais ser focada apenas na representação, mas há que se fazer uma análise da relação entre narrador e texto, como e a partir de que ‘locus’ este foi concebido (SAID, 1995, p. 63). Para Bakhtin (2011, p. 360) “[...] a literatura é parte inseparável da cultura, não pode ser entendida fora do contexto pleno de toda a cultura de uma época”, de tal modo que ela também pode ser entendida como múltipla, pois a Literatura de um lugar não pode mais ser pensada a partir de características específicas, mas deve ser olhada num todo, buscando-se aproximações entre autores, temáticas comuns.

O sujeito contemporâneo é, a partir dessa perspectiva, resultado do fenômeno moderno de divisão, podendo ser compreendido em múltiplas partes e não apenas como ser indivisível. Entender a identidade nesse contexto é pensá-la como múltipla, e não mais única, previsível. O indivíduo da atualidade possui uma identidade multíplice, pois se insere em diferentes contextos, mas que também pode estar fragmentada, e pode sugerir uma necessidade de um encontro consigo mesmo. Stuart Hall nos fala de uma ‘homogeneização cultural’ como resultado do consumismo global, em que diferenças e distinções culturais ficam reduzidas (HALL, 2006, p. 75-76). A fragmentação estaria, então, na questão da percepção de si mesmo em relação à multiplicidade cultural que rodeia o indivíduo.

A literatura contemporânea associa-se assim às perspectivas de identidades pós-coloniais pelas quais se percebe um indivíduo que fala do seu lugar, estando este geralmente à margem da tradição e do cânone. A tradição e o cânone estão alicerçados nas línguas clássicas – grego, latim – e modernas/coloniais – inglês, francês, alemão (MIGNOLO, 2003). As línguas estão associadas a culturas e a territórios, de modo que a produção intelectual no contexto de uma língua remete também ao espaço cultural e territorial no qual esse conhecimento é lançado. Para Mignolo (2003), havia um apoio de um conhecimento e de uma literatura “sérios” nas línguas coloniais e em suas bases clássicas, isso desde o século XVI; eram consideradas de segunda classe algumas línguas milenares tais como o arábico, o mandarim, o hindi e o hebraico. A língua como instrumento de dominação colonial e nacional serviu para organizar e orientar uma educação nas colônias a partir do modelo e da história do Império (MIGNOLO, 2003, p. 347). Assim, a base do conhecimento nos países colonizados era de origem europeia, o que promoveu também um espelhamento em relação à produção artística e literária que surgiu nas colônias. Consideravam-se os moldes de produção de conhecimento a partir do colonizador.

É preciso também levar em consideração o fato de que o sujeito contemporâneo está plenamente ciente da “singular hibridez das experiências históricas e culturais”, de uma inserção em contextos até contraditórios, da transformação destas para além das “fronteiras nacionais” (SAID, 1995, p. 46). Para o autor, as culturas não mais podem ser consideradas unitárias, monolíticas ou autônomas, mas completadas perante os elementos “estrangeiros” que abarcam (SAID, 1995, p. 46). Pode-se pensar, assim, no autor/escritor como um indivíduo complexo, resultado da hibridez da cultura e cujas produções refletem essa integração. Nesse contexto, surgem as manifestações culturais de diferentes grupos, os quais tomam para si o papel de “historiadores de si mesmos” (NORA, 1993, p.17), o que se reflete no intenso movimento de busca memorial identificado por Joel Candau (2012) pelo termo mnemotropismo, dinâmica que caracteriza as sociedades ocidentais contemporâneas.

E, nesse contexto complexo e múltiplo, há que se olhar para o outro, de modo a entender o papel de cada um enquanto escritor e criador de arte que se perpetuará ao longo dos tempos. Nesse sentido, aqui se destacam três diferentes tipos nessa categoria do Outro: a) todo o indivíduo que não é regido pelas mesmas leis que o Eu; b) todo aquele que não sou Eu próprio, que não se identifica com as mesmas “minhas” coisas; c) o Eu do futuro ou o Eu do passado que são Outros perante o Eu do presente. Assim, "[...] introduz-se a diferença – o outro como contraste –, ao contrário do afã de unidade que caracterizava o universo da modernidade; descobrem-se a alteridade e a diversidade" (FELIX, 2002, p. 19).

Percebe-se a importância do Outro no entendimento da identidade múltipla que permeia o contexto social de cada indivíduo na contemporaneidade. Daí, uma escrita como registro contra um esquecimento e a favor da guarda da informação, a qual alcança leitores/observadores cujas experiências também passam por territórios descontínuos, fragmentados, nos quais as zonas de contato com os muitos Outros são marcadoras de identidade, de afirmação do Eu.

Classificar o outro remete a pensar o estrangeiro, aquele que não faz parte do grupo, para o qual somente existe definição negativa, ou seja, é o estranho, "aquele que não pertence à nação em que estamos" (KRISTEVA, 1994, p. 100-101). Nessa classificação, psicologicamente aceita e profundamente interiorizada em todos nós, cria-se uma "distância cultural" que pode ser desenvolvida para modificar atitudes "de rejeição ou de indiferença" (KRISTEVA, 1994, p. 109).

Ademais, Kristeva (1994, p. 141) coloca como condição possível a do homem moderno como um estrangeiro para si mesmo, "[...] um ser estranho cuja polifonia estaria [...] 'para além do bem e do mal'". Daí porque esse sujeito de múltiplas facetas, vozes e fragmentações pode ser também Outro em relação a si mesmo. Ao falar de Montaigne, Kristeva (1994, p. 126) cita o autor destacando que “somos duplos em nós mesmos” – “eu, nesta hora e eu logo mais, somos mesmo dois”.

A partir de uma perspectiva de sujeitos e culturas híbridas, em contato com a alteridade, e de um movimento de resgate e de reflexão das identidades nesse contexto, faz-se um estudo de Literatura Comparada entre o escritor brasileiro e gaúcho Vitor Ramil e o escritor argentino Juan José Saer. Busca-se olhar para questões que são comuns a esses dois autores, buscando pensar zonas de contato e de produção de sentido a partir da memória do lugar. Foram escolhidos um ensaio crítico de cada autor – “A Estética do Frio” (Vitor Ramil) e “El río sin orillas” (Juan Saer) –, um texto em prosa – Satolep (Vitor Ramil) e O Enteado (Juan Saer) –, além de um disco de Ramil – Délibáb – e o livro de poemas de Saer – El arte de narrar.

Destaca-se que a Literatura Comparada[*] permite ultrapassar fronteiras e dialogar com diferentes campos do saber (REMAK, 1961, p. 175). Além disso, compreender as práticas culturais e o intercâmbio entre indivíduos que possuem questões comuns passa pelo campo da interdisciplinaridade, já que nenhuma disciplina pode dar conta do todo e são discussões que não se esgotam.

Ao escolher analisar a obra desses dois artistas, tem-se como objetivo apresentar questões que lhes são comuns: falar do seu lugar cultural, inserido na Região do Pampa – local que integra o Uruguai, regiões da Argentina e parte do território do Sul do Brasil –, pensar as questões de identidade regional a partir da memória, identificar zonas de contato que possam aproximar as reflexões teóricas e a escrita literária desses artistas. Também, deve-se destacar que as trocas são possíveis nesse espaço geoistórico[†] a partir do reconhecimento do outro, do intercâmbio cultural existente. Tal perspectiva de intercâmbio e de construção de uma literatura que permita identificar zonas de contato pode ser possível a partir da memória.

Neumann (2008, p. 333 – tradução nossa[‡]) destaca a importância da memória como tópico da literatura, dizendo que “numerosos textos retratam como indivíduos e grupos lembram seu passado e como eles constroem sua identidade a partir das memórias lembradas”. Neste sentido, os textos destacam a presença mnemônica do passado no presente, reexaminam a relação entre passado e presente e iluminam as funções múltiplas que as memórias cumprem para a constituição da identidade (NEUMANN, 2008, p. 333). Através dos textos literários, percebe-se o quanto a memória é seletiva, segundo o autor, e que a representação da memória diz muito mais sobre o presente do personagem do que sobre os fatos do passado. Os textos ficcionais, portanto, disseminam modelos tanto de memória individual quanto coletiva bem como da natureza e das funções da memória, ou seja, permitem ler recordações individuais, memórias compartilhadas por um grupo ou representações pessoais que um sujeito faz em relação a sua própria memória.

Assim, a Literatura prova ser uma forma de representação da memória através do ato de narrar. Para Neumann (2008), o estudo das narrativas de ficção e de não-ficção tem sido de grande valor para se explorar a representação da memória e se discutir as formas de memória literária. O autor destaca ainda que a literatura pode não somente fazer uma relação entre memória e identidade, mas representar essa relação. Além disso, a literatura cria um mundo próprio da memória através de técnicas literárias (NEUMANN, 2008, p. 334).

Através do texto literário, o autor pode contar uma história de forma detalhada, precisa e viva, e dessa forma criar uma versão que tem relação com fatos reais, pois é da vida cotidiana que os autores encontram inspiração para criar. Também, as narrativas ficcionais podem combinar o real e o imaginário, o lembrado e o esquecido, e explorar o papel da memória através da oferta de novas perspectivas para o passado (NEUMANN, 2008, p. 334).

A Literatura consegue, assim, transformar, repensar e discutir questões sociais e individuais a partir da memória. Cita-se como exemplo o texto Malinche (2007), de Laura Esquivel, o qual retrata a índia Malinche como a tradutora na relação do índio com o branco, época da conquista do México por Hernán Cortês. Como não há uma versão para os fatos da época a partir do olhar do índio, a literatura permite ficcionalizar o passado e criar uma versão que inclua o sujeito indígena também como protagonista em determinadas questões – como a do estreitamente de contato através da língua discutida na narrativa ficcional Malinche – ao lidar com o seu dominador. Destaca-se que Malinche foi vista pelos companheiros índios como uma traidora ao ter uma relação mais afetiva e íntima com Cortês, porém o destaque aqui é a relação que a literatura pode fazer em relação ao passado, à reconfiguração deste a partir da memória e de outras vozes, que não a do dominador, do opressor, do sujeito que está na ponta da pirâmide da sociedade.

Nora (1993, p. 14) fala da memória atual como arquivística, pois se apoia no vestígio, no traço, no registro, nas imagens; uma memória que precisa de “suportes exteriores e de referências tangíveis”. Para o autor, “[...] a coerção da memória pesa definitivamente sobre o indivíduo e somente sobre [ele], como sua revitalização possível repousa sobre sua relação pessoal com seu próprio passado” (NORA, 1993, p. 18). Além disso, “[...] a atomização de uma memória geral em memória privada dá à lei da lembrança um intenso poder de coerção interior. Ela obriga cada um a se relembrar e a reencontrar o pertencimento, princípio e segredo da identidade” (NORA, 1993, p. 18).

Estão, desse modo, ligadas a identidade, a memória e a paisagem cultural, num processo em que cada um “se define em relação a um ‘nós’ que, por sua vez, se diferencia dos ‘outros’” (PESAVENTO, 2000, p. 9). Pode-se também destacar que a memória serve para manter a identidade tanto individual quanto coletiva “a lo largo del tiempo” (GRENOVILLE, 2010, p. 237).

Quanto ao espaço cultural, este é formado por um conjunto de heranças do passado e não é sempre o mesmo:

[...] los acontecimientos que se rescatan en un determinado momento en detrimento de otros, que caen en el olvido, varían, así como también el sentido que se les asigna. Este espacio se constituye a partir de la acción retroactiva de la intencionalidad a futuro sobre las huellas que nos dejó el passado (GRENOVILLE, 2010, p. 239).

Recordar e trazer ao presente uma narrativa do lugar que a todo tempo se molda e se transforma é também relatar o acontecido e o vivido para que estes possam servir ao futuro, ao eu e também ao outro:

[...] a su vez, el trabajo del recuerdo implica el tiempo del duelo, tiempo en el cual se debe dar la reconciliación con el objeto perdido entendiéndolo como “algo cumplido”, algo que “ha sido”. El pasado concebido de este modo se dirige al futuro reclamando el relato de lo acontecido (GRENOVILLE, 2010, p. 239).

Há uma “[...] dialética da memória e da identidade que se conjugam, se nutrem mutuamente, se apoiam uma na outra para produzir uma trajetória de vida, uma história, um mito, uma narrativa” (CANDAU, 2012, p. 16). Mais ainda, “[...] não há busca identitária sem memória e, inversamente, a busca memorial é sempre acompanhada de um sentimento de identidade, pelo menos individualmente” (CANDAU, 2012, p. 19).

A relação que se estabelece entre paisagem e espaço cultural com a memória é então, também, uma busca pela identidade dos autores Vitor Ramil e Juan Saer. Ao falar do lugar destacando, nas narrativas, fatos vividos ou experienciados, por eles mesmos e por outrem, os artistas revelam um sentimento de identidade que se quer individual, mas que também pode ser compartilhado. Individual, pois ao pensar o seu lugar buscavam apenas situar sua arte, seu jeito de narrar, mas coletivo a partir do momento em que suas conceituações e categorias são lidas, ouvidas, interpretadas por diferentes leitores, os quais produzirão sentido para as narrativas a partir da identificação ou não com estas.

Destaca-se um sentimento de identidade múltipla, híbrida e ao mesmo tempo fragmentada do ser gaúcho, à qual Vitor Ramil se refere em seu ensaio “A Estética do Frio”. Há uma aproximação do Brasil tropical e da cultura brasileira em determinados momentos, mas há também um distanciamento quando se pensam nas coisas que caracterizam o Sul, a saber: o frio; o chimarrão; o lugar geográfico que inicia nos cânions e planaltos e se estende até o pampa, uma planície quase que infinita capaz de fazer divisar o horizonte. E esse lugar aproxima a cultura rio-grandense dos países vizinhos Uruguai e Argentina, cuja formação histórica é comum, já que enquanto espanhóis e portugueses disputavam as terras do continente, na época da colonização, muitas foram as divisões pelas quais o Rio Grande do Sul passou: ora pertencente à Espanha, ora a Portugal.



Figura 1 - Tabela com as obras analisadas neste texto, de cada um dos autores



2. Vitor Ramil

O escritor e compositor Vitor Ramil é natural de Pelotas, no estado do Rio Grande do Sul, Brasil, tendo iniciado a carreira artística como músico, compositor, letrista e cantor na década de 1980. Ao longo dos anos, buscou encontrar um jeito próprio de compor e de narrar, conforme ele mesmo sempre declarou ao refletir sobre sua produção artística. A postura e a música desse artista se definiriam nos discos gravados na segunda metade dos anos 1990, quando se apresenta também o escritor, através da primeira novela Pequod lançada em 1995 – que teve repercussão positiva junto à crítica e também foi traduzida para o francês (RUBIRA, 2014, p. 286).

O ensaio intitulado “A Estética do Frio” surge nos anos 1990, com revisão textual e publicação no exterior – traduções em francês e islandês – a partir dos anos 2000: “[...] a conferência [...] proferida por Vitor Ramil no Théatre Saint-Gervais em Genebra/Suíça, em 19 de junho de 2003, representa um aprofundamento das ideias contidas no ensaio publicado em 1992 e um resgate das principais reflexões acerca do tema [...]” (RUBIRA, 2014, p. 206).

O texto foi elaborado, conforme afirma o autor (RAMIL, 2004, p. 8) a partir de uma sensação de não pertencimento, de um questionamento pessoal sobre o que pudesse fazer sentir-se integrado tanto ao contexto tropical brasileiro quanto ao do frio, do sul do país. Esse sentimento foi percebido pelo autor quando estava no Rio de Janeiro num mês de junho e num programa televisivo via cenas de carnaval fora de época no nordeste do país e cenas da chegada de frio intenso na Região Sul (RAMIL, 2004, p. 9). A percepção da diferença está registrada na afirmativa: “[...] vi o Rio Grande do Sul: campos cobertos de geada na luz branca da manhã, crianças escrevendo com o dedo no gelo depositado nos vidros dos carros, homens de poncho [...] andando de bicicleta [...]” (RAMIL, 2004, p. 9). Aquelas imagens tão cotidianas fizeram-no perceber aquele lugar como seu e “[desejou] estar não em Copacabana, mas num avião rumo a Porto Alegre” (RAMIL, 2004, p. 10). É a constatação da diferença, eixo sobre o qual se articulam os processos de identidade, que o autor buscará definir o que abordou como a estética do frio: “[...] a imagem me remetia ao sul extremo, o sul do Sul, lá onde pampa e gaúcho, como mitos ou como realidade, são comuns a Rio Grande do Sul, Uruguai e Argentina” (RAMIL, 2004, p.19). E de uma música: “[...] assim como o gaúcho e o pampa, a milonga é comum a Rio Grande do Sul, Uruguai e Argentina, inexistindo no resto do Brasil” (RAMIL, 2004, p. 21).

Essa estética do frio seria a representatividade positiva de um clima específico de um lugar, “[...] porque sempre se vê o frio como algo negativo, né... é uma pessoa fria, é o clima frio, é a música fria, a temperatura fria, tudo isso é ruim... aí de repente tu vira isso, tu inverte [...]” (informação verbal – RAMIL, 2016) e passa a “[...] valorizar... já começando pela ideia de tratar o frio como valor estético e [pensá-lo] como algo positivo e não como algo negativo” (informação verbal – RAMIL, 2016).

Em relação a essa questão do frio, Vitor fala de uma temporada no Nordeste com Carlos Moscardini – violinista e compositor argentino, com quem Ramil faz parceria em alguns momentos de sua carreira –, ambos na praia, “[...] os dois sentados, aquele sol, tomando sei lá o quê, uma caipirinha, tomando banho e voltando, vai na água e volta, e fica ali, aquela coisa... daqui a pouco ele veio e disse assim ‘no se puede vivir así, hay que haber alguna hostilidad’” (informação verbal – RAMIL, 2016). Essa frase do amigo fica marcada no pensamento de Vitor:

[...] eu achei isso muito bom, [...] porque é um pouco uma característica da gente do Sul [...] tu te conecta com aquela natureza de outra maneira... se tu não pode tá suando e nadando e pulando e rindo, tu tá talvez com um pouquinho mais de roupa no fim da tarde, tomando mate, dançando na beira da praia, tocando teu violão, lendo um livro, né?! [...] Moscardini dizia ‘não, a gente tem que buscar uma lenha, tem que passar esse trabalho de precisar juntar uma lenhazinha, fazer um foguinho no dia em que está mais frio’ (informação verbal – RAMIL, 2016).

Este relato demonstra a relação das pessoas do Sul com o frio, temática a partir da qual Ramil define sua estética. Parafraseando Borges, Ramil destaca a dignidade que há no frio, em se vestir um sobretudo, em se adaptar ao clima, fato que mexe com cada um internamente também (informação verbal – RAMIL, 2016). Destaca ainda ser esse o clima que nos representa enquanto gaúchos num país conhecido como tropical:

[...] onde está o frio no Brasil? ele está no Rio Grande do Sul! Claro que tem frio em São Paulo, tem festival de inverno no Ceará, tem festival de inverno até no Piauí, mas o frio não é representativo pra eles como o é pra nós... Pra nós o frio é simbólico, transcende o frio elemento climático, né... E no meu caso, eu gosto de ver o frio também como um elemento estético, vou dizer assim, como uma sugestão pra arte, e pra disposição de produzir arte, também... (informação verbal – RAMIL, 2016).

Sem dúvida, na própria reflexão do autor tem-se a questão do pampa, do gaúcho, da música comum à Região do Prata, como de intercâmbio de culturas, que a obra desse artista busca enaltecer. A partir desse ensaio teórico, Ramil vai definindo sua obra na perspectiva da construção de diferentes zonas de contato e fricção identitárias, o que caracteriza um território cultural de fronteira. Há em Ramil um olhar crítico sobre sua obra, uma busca de identidade marcada por questões próprias do lugar, as quais são visíveis em seu pensamento e escrita a partir da memória.

O texto em prosa Satolep (2008) trata também de elementos culturais do sul: o frio, a umidade, a milonga, a roda de conversas ao redor de um violão, o chimarrão. Mas será igualmente uma narrativa muito voltada para a memória de uma cidade: Pelotas. O próprio título remete à cidade gaúcha através do anagrama desta.

Satolep é a narrativa do personagem Selbor quando este retorna ao lugar natal aos 30 anos de idade. Neste momento, a cidade não corresponde à imagem da cidade de sua infância, quando saiu em busca de lugares ao sol. O autor explora, assim, o elo afetivo entre a pessoa e o lugar, denominado de topofilia, palavra que “[...] indica um ‘neologismo’, [mas] útil quando pode ser definida em sentido amplo, incluindo todos os laços afetivos dos seres humanos com o meio ambiente material” (TUAN, 1980, p. 107). A memória da cidade não condiz com o lugar ao qual Selbor volta, o que motiva o personagem/narrador a percorrer cada rua e espaço da cidade, fotografando e escrevendo sobre suas percepções, seu sentido produzido para o lugar a partir das sensações pessoais.

Através dos textos e imagens dispostas no livro, logo se percebe o intento do narrador: dar ao leitor sua versão do lugar a partir de fatos e lembranças que lhe parecem mais importantes, e também a partir da sensação de que as memórias que guarda não condizem com a cidade a qual retorna. Ou ainda, narrar-se na cidade a partir do que lembra, criando uma interpretação de si e do lugar. Em Satolep, há a possibilidade de leitura associada à construção de um mapa da cidade, acompanhando a deambulação de Selbor.

Acompanha-se, através de muitos adjetivos, a ideia de cidade sulina e fria que o autor pretende criar no imaginário de seu leitor: a intensa umidade (RAMIL, 2008, p. 53); o minuano (RAMIL, 2008, p. 54); “os dias de chuva ininterrupta [...] e de um cinza metálico que se deita sobre tudo e todos” (RAMIL, 2008, p. 56); a cerração e o frio (RAMIL, 2008, p. 78); a não possibilidade da imaginação de um verão no ‘Brasil frio’ (RAMIL, 2008e, p. 139). A personagem Selbor, ao se instalar definitivamente na cidade de Satolep, também está ali movido pelo sentimento de que as estações frias sim é que eram suas estações, já que abandona o Norte (para onde viajara) movido pelo sentimento inexplicável de que nada lá era seu. E, ao voltar, procura seguir seu intento: rever as coisas geometrizadas pelo frio, aquelas todas que ele ainda trazia na lembrança e torná-las ainda mais presentes, mais vivas em seu corpo:

[...] é um anoitecer de inverno como o da noite em que iniciei este relato que simboliza o anoitecer em Satolep. A luminosidade caía à medida que o bonde avançava. A névoa [...] rasteira pelos campos começava a emanar do fundo das ruas, por todos os lados, simultaneamente (RAMIL, 2008, p. 28).

A narrativa de Satolep indica que a afetividade do indivíduo com o lugar é possível através da escrita das lembranças do sujeito em relação à paisagem cultural, as quais formam a memória da cidade, sendo, para Selbor, a memória de Satolep formada a partir dos elementos culturais mencionados: o frio, a umidade, a milonga, a roda de conversas ao redor de um violão, o chimarrão.

Também para refletir a questão da relação entre sujeito e lugar, escolheu-se o disco Délibáb (2010). Nele, Ramil traz em forma de canção poemas de João da Cunha Vargas e de Jorge Luís Borges[§], os quais, em suas obras, valoraram a questão da memória e do lugar.

Os poemas dão destaque ao cotidiano do lugar, ao estilo de vida das personagens, algo tão próximo das noções sulinas já destacadas nas demais obras do artista: “albornoz passa silbando / una milonga entrerriana; / bajo el ala del chambergo / sus ojos ven la mañana” (RAMIL, 2010 – Milonga de Albornoz); “velho porongo crioulo / te conheci no galpão / trazendo meu chimarrão / com cheirinho de fumaça / bebida amarga da raça / que adoça meu coração” (RAMIL, 2010 – Chimarrão); “rancho de barro caído / num canto à beira da estrada / algum tempo foi morada / do velho guasca tropeiro / foi pouso de carreteiro / e do índio da pá virada” (RAMIL, 2010 – Tapera).

A partir dos exemplos citados, pode-se observar a identidade do sujeito pertencente ao Sul, os elementos que compõem o repertório cultural de um sul marcado pelas tradições fronteiriças – a milonga, o chimarrão, a tapera[**]: signos desse ethos gaúcho –; a relação estabelecida entre os sujeitos: “milonga que este porteño / dedica a los orientales / agradeciendo memorias / de tardes y de ceibales” (RAMIL, 2010 – Milonga para los orientales); além das características peculiares de paisagem e de vestimentas do gaúcho: “alcei a perna no pingo / e saí sem rumo certo / olhei o pampa deserto / e o céu fincado no chão / troquei as rédeas de mão / mudei o pala de braço / e vi a lua no espaço / clareando todo o rincão” (RAMIL, 2010 – Deixando o pago).

Retomando a questão dos elementos considerados próprios do gaúcho – a música, o mate, o rancho ou tapera – pode-se dizer que eles destacam o cotidiano da vida rural no Rio Grande do Sul. Para ilustrar um imaginário coletivo que perpassa gerações, destacam-se exemplos na música gaúcha em que estes elementos estão presentes: “Nasci no meio do campo / Na costa do banhadal / Dentro dum rancho barreado / De chão duro e desigual / Meu berço foi um pelego / Sobre um couro de bagual” (Meu rancho – Noel Guarany) –; “A tarde cai, eu camboneio um mate / Junto ao braseiro do fogo de chão” (Na paz do galpão – César Passarinho).

A unidade em Ramil está, assim, nessa relação com o lugar, nas evocações do elo entre indivíduo e espaço geográfico. Sua arte busca estabelecer relações com a paisagem local, que faz parte do cotidiano desse sujeito que é brasileiro, é gaúcho, é latino-americano e é platino. Ao escrever sobre a escrita do lugar, Candau destaca uma necessidade de “selecionar, escolher, esquecer” por parte do indivíduo frente às condições próprias “a todo organismo vivo”, ou seja, às mudanças sofridas pelo espaço a partir dos “modos de vida” (CANDAU, 2012, p. 109-110). Assim, o repertório cultural de Ramil em sua obra passou por um processo de escolha e de esquecimento, no qual diferentes elementos, que constituem também o lugar do qual escreve, foram deixados de lado para uma seleção memorial própria, que diz muito de si mesmo, mas que também permite aproximar a obra desse artista com a de outros.

Desses elementos deixados de lado, pode-se dizer que o Sul do Brasil não é um lugar apenas frio, bem como nele convivem os mais diferentes tipos sociais – alguns abarcados nas narrativas de Ramil, tais como o louco, os artistas, os intelectuais, o gaúcho rural, entre outros, e outros tipos sociais talvez não estejam presentes. Também, a imagem que Ramil destaca como sendo a que une os gaúchos, os argentinos e os uruguaios – a de um “[...] céu claro sobre uma extensa e verde planície sulista, onde um gaúcho solitário, abrigado por um poncho de lã, tomava seu chimarrão, pensativo, os olhos postos no horizonte” (RAMIL, 2004, p. 19) – pode ser apenas um mito ou pode dizer muito da real sensação dos moradores desse lugar. Deste modo, destaca-se que as escolhas do autor condizem muito com sua identidade pessoal, sua visão particular do lugar provocada pelo distanciamento do mesmo quando foi morar no Rio de Janeiro e sentiu a diferença de percepções e relações afetivas com o lugar, dentro de um mesmo país.


3. Juan José Saer

O escritor Juan Jose Saer nasceu em 1937, na província de Santa Fé, na Argentina. Em 1968, mudou-se para a França onde foi professor de literatura na Faculdade de Letras da Universidade de Rennes, tendo falecido nesse país em 2005, e sendo considerado uma das maiores expressões da literatura argentina e da literatura mundial (SAER, 2002).

O autor buscou, através de sua obra, pensar sobre os elementos do seu lugar e a constituição do mesmo, através de lembranças e vivências pessoais: a crítica lhe atribui não só uma discussão do panorama platino, mas a reflexão sobre a escrita e a relação do crítico com o ficcionista (LUCERO, 2012; BON, 2013; BUSTINZA, 2013). Em seu ensaio “El río sin orillas” discute sobre a importância do pampa e do seu lugar natal de maneira subjetiva, a partir de uma visão pessoal e afetiva em relação a essa paisagem cultural. Logo na introdução, ao mencionar a preparação para a escrita do texto, percebe-se que o autor se refere à Região do Prata e menciona os países vizinhos:

[...] harto tal vez de incitarnos a admirar, por reglamento, la consabida ciudad de Casablanca en el amanecer, el infaltable Cristo del Corcovado en los despegues de Río y un Porto Alegre puramente nominal, [...] a nuestra derecha podíamos contemplar, si lo deseábamos, “el punto en que confluyen el río Paraná y el río Uruguay para formar el Río de la Plata” […] (SAER, 2011, p. 14).

Saer discorre sobre os aspectos geográficos e composicionais do lugar, falando também das pessoas. Descreve o Pampa como uma geografia onírica, espiritual, uma extensa planície na qual as espécies tendem a formar enormes colônias, com uma clara tendência a uma proliferação uniforme, o que dá à Região um caráter mágico (BUSTINZA, 2013).

O autor descreve o lugar fornecendo ao leitor elementos que possam criar um mapa imagético a partir do texto: “[...] visto desde la altura, ese paisaje era el más austero, el más pobre del mundo” (SAER, 2011, p. 30); “[...] y sin embargo ese lugar chato y abandonado era para mí, mientras lo contemplaba, más mágico que Babilonia, más hirviente de hechos significativos que Roma o que Atenas, más colorido que Viena o Amsterdam, más ensangrentado que Tebas o Jericó” (SAER, 2011, p. 55).

Por outro lado, o autor se considera parte do lugar independentemente das coisas presentes ou das faltas que o espaço físico pudesse ter, em comparação com outros lugares nos quais viveu, tais como a França (SAER, 2011, p. 56). Lê-se, no ensaio, uma descrição das terras fronteiriças ao Rio da Prata, em que o autor apresenta uma cronologia de fatos sobre o lugar, desde os primeiros tempos de vida indígena, de colonização, até o momento atual. Todas essas coisas contadas – a partir de referenciais bibliográficos e de experiências pessoais – dizem muito da memória do espaço físico e cultural do qual o autor procedeu.

A memória do lugar e das gentes é temática também de sua narrativa em prosa O Enteado. Lançado em 1983, este é seu sexto romance e entrelaça “[...] história, memória e escritura explorando as possibilidades de representar, por meio da palavra, o ilusório universo de lembranças que sustenta e até justifica uma vida” (SAER, 2002).

N’O Enteado tem-se, então, a narrativa feita por um personagem na idade de 60 anos sobre coisas que viveu desde a infância até aquele momento. O destaque vai para o desejo de aventuras e o tempo de dez anos passados entre índios à beira de um rio. Quando há o retorno à convivência com seus conterrâneos, primeiramente precisa haver uma adaptação ao local e, posteriormente, o olhar sobre o passado.

Ao deixar o convívio com os índios, o personagem escolhe viver na cidade: “[...] e se, agora que sou um velho, passo meus dias nas cidades, é porque nelas a vida é horizontal, porque as cidades dissimulam o céu” (SAER, 2002, p. 11). E, a partir da cidade há o direcionamento do olhar para o rio, para a gente daquele lugar no qual viveu durante algum tempo e cujas memórias lhe permitem refletir sobre os indivíduos e sua relação com o tempo, a natureza, a vida e a morte.

O olhar para a alteridade é possível a partir da memória, de tal forma que o próprio narrador diversas vezes refletirá sobre o papel da memória em sua escrita:

[...] se o que manda, periódica, a memória, consegue rachar esta espessura, uma vez que o que se filtrou vai se depositar, ressecado, como escória, na folha, a persistência espessa do presente se recompõe e se torna outra vez muda e lisa, como se nenhuma imagem vinda de outras paragens a tivesse atravessado (SAER, 2002, p. 69).

Essa memória do passado invade o instante do narrador e o coloca como que em universos distintos: “São essas outras paragens, [...], não mais palpáveis que o ar que respiro, o que deveria ser minha vida. E [...] por momentos, as imagens crescem, dentro, com tanta força, que a espessura se apaga e eu me sinto como num vaivém, entre dois mundos [...]” (SAER, 2002, p. 69). Papel importante também é dado pelo narrador ao esquecimento: “[...] o vivido roía, com sua espessura, as lembranças fixas e sem defesa. Quando nos esquecemos é porque perdemos, sem dúvida alguma, menos memória que desejo” (SAER, 2002, p. 103).

Tanto a memória quanto o esquecimento levam esse velho – o personagem do livro – a escrever sobre o que viveu, além de contar e recontar os mesmos fatos várias vezes através de peças teatrais protagonizadas com outros atores. Assim, além da reflexão sobre o espaço físico, feita pelo narrador, também é realizada uma reflexão sobre a arte de escrever. Essa questão permeia a obra de Saer, também em sua única obra poética, o livro El arte de narrar, uma compilação de poesia publicada em três edições, sucessivamente aumentadas, em 1977, em 1988 e em 2000 (MONTELEONE, 2014).

O poema de mesmo título do livro trata dessa manufatura que é o escrever: “Construcción irrisória, que horadan los ojos del que lee buscando, ávidos, en el revés del tejido férreo, lo que ya han visto y que no está [...]” (SAER, 2000). Além disso, outro poema intitulado “De duelos largos” também pode remeter ao duelo que o autor empreende com a escrita quando da composição de um texto: “De duelos largos emerjo, adormecido, a muertes frescas [...]” (SAER, 2000).

Mas, também o livro de poemas contempla questões sobre o lugar. O poema “La historia de Cristóbal Colón” faz alusão a esse contingente de terras tão vasto percebido pelos colonizadores e também remete a outra questão discutida por Saer que é a alteridade: “Horizonte, a mi alrededor, / qué vacío te deja este mar blanco, sin olas, / sin espuma, y cómo / ni rocas ni algas te dividen / ni te dejan parir / la entrevista alteridad” (SAER, 2000).

Assim, pode-se entender que a obra de Saer aqui analisada – o ensaio “El río sin orillas”, a prosa O enteado e o livro de poemas El arte de narrar – trata de questões que refletem sobre a arte de escrever, sobre a memória e a identidade de um sujeito em relação ao seu espaço múltiplo. Esse espaço geográfico foi palco de muitas histórias, mas no qual também convergem distintas culturas: latino-americana, argentina, platina. Os elementos culturais representados por Saer – o Rio da Prata, as histórias da colonização, o gaucho, o Pampa, os índios, entre outros – revelam uma memória que se aproxima daquela escolhida por Ramil e aproxima os contextos diferentes desses dois escritores, situados ao sul da América, na Região do Prata, um no Rio Grande do Sul, outro na Argentina.

Na obra desse artista – assim como na de Vitor Ramil – há uma memória que se ancora em tradições, relatos históricos, narrativas de um sul profundo. É essa memória, profundamente enraizada no cenário humano e ambiental que dá formato à obra artística. Pode-se remeter à metamemória definida por Candau, a qual é uma “representação” que os sujeitos fazem acerca de sua própria memória, a qual está relacionada ao conhecimento que cada um tem e aquilo que diz sobre ela, além de ser uma “construção explícita da identidade” (CANDAU, 2011, p. 23). É também uma “capacidade de percorrer, remontar no tempo” que, através da narrativa, articula “lembranças no plural e a memória no singular, a diferenciação e a continuidade” (RICOEUR, 2007, p. 108).

Por meio da narrativa, o autor cria uma paisagem cultural que se recupera pelo relato memorial. A Literatura é, assim, uma expressão do sujeito autor – a biografia também permite relacionar a trajetória de vida com os escritos. Saer reflete sobre questões que lhe são caras, com as quais lida através da memória e da arte, a saber, a relação do eu com o outro. Através da arte, o autor deixa marcados os elementos culturais que marcam sua memória e diferenciam sua paisagem cultural de outras.


4. Considerações finais

Vitor Ramil e Juan José Saer buscam compreender em sua obra uma escrita ficcional[††] que está articulada e explicitada a partir de reflexões críticas feitas pelos próprios autores. A questão da unidade tão defendida pelo próprio Ramil pode de alguma forma ser estendida a Saer: uma escrita que se quer completa, dizendo coisas comuns, pensando o lugar a partir da memória. O elo do sujeito com a paisagem geográfica é percebida em ambos como temática mote para pensar todas as demais questões que os inquietam.

Há em ambos os autores uma produção de sentido a partir do lugar. Saer remonta às memórias dos habitantes indígenas de beira-rio quando da época da colonização, olhando para eles com distanciamento a tal ponto de perceber suas relações coletivas e individuais com o espaço físico, trazendo a memória desse rio a partir do qual tantas histórias já foram vividas. Ramil destaca questões do gaúcho, do pampa, indivíduo que se constitui também a partir de uma origem indígena, e busca trazer a memória desse lugar permeado pelo frio, pelo chimarrão, pelo pampa, pela milonga, pelo cavalo, pela tapera, entre outros.

Ramil destaca em seu ensaio “A Estética do Frio” as questões que o fazem pensar, que o inquietam enquanto artista, as quais estão relacionadas ao lugar frio e úmido do qual procede, mas também ligadas a um sentimento de pertencimento a um lugar híbrido, em que diferentes culturas dialogam e se entrecruzam. Sua produção artística busca, então, discorrer sobre esse lugar que é o Rio Grande do Sul e está localizado no Brasil, na Região do Pampa e na América Latina.

Saer, por sua vez, refletirá sobre as origens do lugar e as gentes que viveram ali ao longo dos tempos. Sua reflexão teórica é quase a história do lugar, segundo apontam alguns críticos de sua obra (LUCERO, 2012; BON, 2013; BUSTINZA, 2013). O autor também levará em consideração a fronteira estabelecida pelo Rio da Prata com os países vizinhos e discorrerá sobre o pampa e o gaúcho, paisagem e indivíduo comuns.

Quanto às narrativas ficcionais, pode-se destacar que em ambas o personagem principal se desloca do lugar de origem ao qual retorna posteriormente: “Há muitos anos eu deixara a terra da minha primeira camisa para trás e saíra em busca do sol” (RAMIL, 2008, p. 10-11); “[...] tive sede de alto-mar; [...] o importante era me afastar do lugar onde estava até um ponto qualquer, feito de intensidade e delícia, do horizonte circular” (SAER, 2002, p. 12).

Em Satolep, Selbor busca identificar-se com a cidade que não é mais a mesma de sua infância, sendo que as fotografias servem para contar sua história e sua ligação com o espaço físico; ele consegue olhar para o lugar a partir das vivências em outros lugares e do estranhamento quando do retorno. N’O Enteado, a representação teatral – feita pelo narrador quando retorna ao seu lugar, juntamente com um grupo ao qual se alia – é uma forma de contar a história vivida, sua versão dos fatos; ocorre a partir daí um olhar para a alteridade a partir do distanciamento e ele busca, então, compreender a identidade do outro e a sua a partir da memória.

Além disso, as canções de Ramil e os poemas de Saer serão também uma complementação do pensamento crítico que possuem sobre seu lugar. Trarão entremeadas em seus versos questões que remetem à identidade do sujeito tanto enquanto artistas que trabalham com a palavra e a memória, como enquanto indivíduos que buscam compreender o espaço físico. O disco Délibáb de Ramil retrata diferentes características desse lugar onde vive o gaúcho: o chimarrão, o cavalo como companheiro do homem, os escravos negros, a gaita, a milonga, a coragem para lutar, o rancho à beira da estrada, o pampa, elementos que caracterizam esse sujeito e que fazem parte da memória coletiva do ethos gaúcho. El arte de narrar, de Saer, discorre sobre as origens do lugar, além de falar do tempo, do rio da Prata, da memória, da infância, da pátria.

Ramil e Saer têm ainda em comum o diálogo que estabelecem com a obra de Jorge Luis Borges. Ambos são leitores de Borges e sua escrita é marcada pela intertextualidade que estabelecem com esse escritor argentino. Saer dialoga com as definições de Borges sobre o gaúcho e o apresenta como um produto pampeano (BUSTINZA, 2013). Ramil não só se define leitor de Borges (RUBIRA, 2014, p. 33), como transforma poemas do escritor em música. Outra relação interessante é o refletir sobre a obra ficcional, tarefa que Borges também buscava empreender.

Borges (1985) destaca uma ligação entre tempo e pensamento estabelecendo que algo pode se tornar concreto a partir do ato de pensarmos. Além disso, para o autor “nossa vida é uma contínua agonia” justificando assim a abstração do tempo presente (BORGES, 1985, p. 49). Devemos à memória a relação que podemos estabelecer entre o que somos e o que nos tornamos (BORGES, 1985, p. 48). A agonia de Ramil e de Saer estaria em entender o seu lugar, transferindo-o, através da memória, para a arte: falar dele impede que a abstração do presente o transforme em algo indefinido, vago, espaço que o olho contemporâneo percorre com uma rapidez cada vez mais fluída.

Aproximar o contexto platino através da literatura de Vitor Ramil e Juan Saer, e da memória que cada um deles busca trazer para sua arte, serve também para pensar a identidade coletiva de sujeitos que têm elementos em comum, conservando os vestígios de acontecimentos passados. Há um sentimento de pertença ao contexto pampeano-platino expresso por esses artistas, através de sua arte, a qual é elemento de afirmação de identidades híbridas que se aproximam num território igualmente múltiplo. Estão congregados o eu e o outro enquanto sujeitos de uma mesma história, de um mesmo lugar.

REFERÊNCIAS

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BON, Francesc. Juan José Saer: El entenado. In: Un libro al día. Disponível em < http://unlibroaldia.blogspot.com/2013/11/juan-jose-saer-el-entenado.html>. Acesso em: 01 out. 2015

BORGES, Jorge Luis. Cinco visões pessoais. Trad. Maria Rosinda Ramos da Silva. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1985.

BUENO, Silveira. Minidicionário da Língua Portuguesa. São Paulo: FTD, 1998.

BUSTINZA, Iván Alejandro U. Juan José Saer (1937 – 2005). In: Discursos, 2013. Disponível em < http://discursosposmodernos.blogspot.com.br/2013/02/juan-jose-saer-1937-2005-el-rio-sin.html>. Acesso em: 30 set. 2015

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[*] A Literatura Comparada refere-se ao “estudo da literatura para além dos limites de determinado país, e estabelece relações entre a literatura, de um lado, e outras áreas do conhecimento como as artes [...], filosofia, história, ciências sociais [...], etc. de outro” (REMAK, 1961, p. 175).


[†] Usa-se o termo a partir da definição de Mignolo (2003) em relação a um espaço físico com uma história e uma geografia particulares.


[‡] “Memory and processes of remembering have always been an important, indeed a dominant, topic in literature. Numerous texts portray how individuals and groups remember their past and how they construct identities on the basis of the recollected memories” (NEUMANN, 2008, p. 333).


[§] João da Cunha Vargas (1900- 1980) foi um poeta gaúcho natural de Alegrete/RS, mas que não manteve registros escritos de seus versos – apenas um livro foi publicado após sua morte. Jorge Luis Borges (1899 – 1986) foi escritor, poeta, tradutor, crítico literário e ensaísta argentino.


[**] Denominação utilizada para falar de uma habitação ou aldeia abandonada (BUENO, 1998).


[††] Apesar de apresentarem-se canções de Ramil, destaca-se que foi o texto das canções o objeto de análise. A canção, então, considerada como uma escrita.


*Texto originalmente publicado nos Cadernos do IL (UFRGS), PORTO ALEGRE. , v.1, p.43 - 57, 2017. Disponível em <http://seer.ufrgs.br/index.php/cadernosdoil/article/view/66813/pdf>, sob a orientação da professora Dra. Maria Letícia Mazzucchi Ferreira.

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