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“Chega de violências contra você”

Marlise Buchweitz

Nem as medalhas, os reconhecimentos, os presentes e qualquer comemoração alusiva ao dia do professor conseguem apagar as marcas das barreiras e das lutas travadas, como professora de educação básica, ao longo dos últimos 13 anos, dos quais 10 são de efetivo exercício em sala de aula

Medalha recebida por seleção no Prêmio Professor Inovador, etapa municipal, em Três Coroas/RS

Lembro-me bem do primeiro dia em que entrei numa sala de aula: cabeça cheia de conhecimentos, teorias, sonhos, utopias, ilusões... Lembro-me bem de, pouquíssimo tempo depois, perceber que eu precisaria mudar tudo o que tinha aprendido ou experimentado no estágio, durante a licenciatura, e me adequar às regras da coordenação, ou melhor, da secretaria de educação do município ao qual estava vinculada.

Quando iniciei a vida profissional, naquele primeiro concurso no qual fui nomeada, num happy hour com colegas de profissão, perguntaram-me qual era meu sonho na vida. Sem pensar duas vezes, respondi que queria aprender a ser professora e poder trabalhar na Universidade e, um dia, ser capaz de passar adiante o conhecimento que eu tivera a partir do “chão de sala de aula”, já que senti muita falta disso em minha graduação.

Lembro-me de, dois anos depois, pensar comigo que eu não era feita pra trabalhar com a educação básica – nada relacionado aos estudantes ou ao fato de como fazer minhas aulas funcionarem – e escolhi desistir. O pensamento veio por causa de todas as questões burocráticas pelas quais eu precisava passar e não conseguia, faziam-me mal (como ser chamada pra conversar com a direção para explicar minha metodologia, por exemplo), as quais incluíam, também, notas baixíssimas no estágio probatório, sem qualquer fundamentação teórica, visto que, no primeiro questionamento que fiz, passei da nota mínima para a nota máxima.

Menos de dois anos após essa primeira desistência, eu descobri que queria muito voltar a fazer aquilo que eu mais sabia fazer. Não à toa, minha primeira “cobaia” tinha sido minha irmã, lá nos meus 5, 6 anos de idade. Aquilo pulsava em mim e foi muito simples retomar, no sentido de que logo eu estava fazendo vários concursos e sendo nomeada.

Experimentei alguns lugares e passei por situações que, lendo assim, não parecem reais: a) numa escola, assumi o lugar do ex-professor contratado, cuja posição no concurso era logo após a minha e, para uma das turmas, não havia o que eu fizesse em sala que os adolescentes não reagiam, não respondiam, não interagiam; questionados, diziam que só fariam a aula com o professor X. Eu podia ser a maior das palhaças (aliás, sempre me senti um pouco assim para tentar fazer com que alguns tivessem o mínimo de resposta para as propostas que eu levava), mas não dava resultado, a ponto de me sentir tão humilhada que desisti. Sim, talvez eu não soubesse dar aula, mesmo, e o professor X fosse mil vezes melhor... [Era pra esse episódio fazer parte do meu currículo de experiências práticas e, quem sabe, eu aprender algo...]; b) em outro município, o professor da disciplina de inglês assumia todas as turmas da escola, e, comparado às demais disciplinas, isso resultava em duas aulas a mais em sala, de modo que eu tinha dois horários livres a menos do que os outros colegas. Para a secretaria de educação, estava tudo bem ser assim, e eu não precisava receber nada a mais por trabalhar dois períodos a mais em sala [comparando com os demais colegas].

Já não tenho vontades de citar os muitos episódios do lugar anterior (antes do último) em que trabalhei. Agoniada com não se ter, muitas vezes, condições mínimas de trabalho ou com questões que não são justas, do meu ponto de vista, torno-me a pessoa que não cala, que confronta, que não aceita aquilo que estiver incoerente com as normas, as leis, as teorias e as tendências científicas para a Educação, nos dias em que vivemos. Isso, com certeza, me traz empecilhos ao trabalho, já que, quando preciso de algum material, algum apoio, alguma saída para evento, tudo se transforma em mais dificuldades.

Hoje em dia, já muito mais consciente de todos os procedimentos metodológicos de uma aula minha ou de um projeto realizado, descobri que tudo o que eu intuía, lá, em 2008, era o que agora consigo explicar através da formação em Estudos Interdisciplinares e dos vieses da neurocompatibilidade (TOSIN, 2020) aplicada ao ensino. Qualquer postura de algum colega/gestão contra esse olhar, bem como todas as atividades ancoradas em conteúdos sem contextualização, repetidas há décadas do mesmo jeito, sem mudar uma vírgula, faziam-me sofrer e me perguntar sobre qual a utilidade de meu conhecimento, se meus gestores não viam forma de aproveitá-lo minimamente.

Todas estas ideias estão colocadas aqui para falar do meu último trabalho como professora de Educação Básica, do qual pedi exoneração, na data de hoje.

Tudo começou com um sonho de trocar mais uma vez de concurso e, se as barreiras e as lutas dos professores são as mesmas em qualquer lugar, então que fosse numa cidade de praia. Inicialmente, vale dizer que, ao prestar o concurso, não houve nenhuma leitura, exigida para a prova, que deixasse qualquer indício de que, no município, as crianças têm inglês desde o pré. Então, grande foi minha surpresa ao ser nomeada e designada pra atuar na Educação Infantil. Naquele momento, solicitei uma conversa com a Secretária de Educação, argumentei que eu não tinha qualquer formação para atuar com as crianças de pré e que, pior do que tudo, não sabia como começar. A resposta, pasmem, veio com muitos sorrisos e uma dica de aceitar o desafio, pois eu perceberia o quanto as crianças eram amorosas e como eu acabaria gostando do trabalho. Saí, sem conseguir responder que reduzir a educação ao afeto não resolvia meu problema; ali, senti que não consegui responder porque não adiantaria de nada outra fala minha, visto que o argumento de que eu não possuía Pedagogia ou alguma pós-graduação com ênfase em Educação Infantil e séries iniciais do Ensino Fundamental e, muito menos, formação em Magistério de nada serviu.

Veio a quarentena e o que já era difícil pra mim, no presencial, tornou-se mais complexo, no ensino remoto, mas tive o auxílio das professoras regentes, ao longo do ano e ficou tudo bem, até aí, na medida do possível.

Creio que, de tanto eu insistir que não queria o pré, ganhei as séries iniciais, o que, para mim, foi pior ainda... Se eu já passava uma semana inteira pensando numa atividade para as turmas de pré, imagina eu pensando uma para o 2º ano, uma para o 3º ano, uma para o 4º ano e uma para o 5º ano?! Meu cérebro deu voltas e não houve jeito de eu imaginar isso para meu 2021. Pior ainda: imaginar tudo isso com aulas presenciais a partir de 17 de fevereiro, no meio de uma pandemia, sem vacina, com casos diários de morte acima de 1000.

Em dezembro, precisei assinar que aceitava as turmas e, ao invés de assinar que aceitava, escrevi um parágrafo destacando que, segundo as portarias de apostilamento de cursos de graduação do MEC, licenciados atuam com 6º ano em diante e pedagogos atuam com Educação Infantil e séries iniciais. [Se alguém souber de alguma portaria que indique o contrário, me informe, por favor]. Ao ser questionada por que eu não pude simplesmente assinar o documento, e eu explicar, os gestores me disseram que a culpa era dos cursos de graduação das universidades, que não ministravam disciplinas relacionadas à Educação Infantil e às séries iniciais, nas licenciaturas, e do MEC, por não incluir o trabalho com essas turmas de ensino básico para os licenciados (oi?).

Enfim, as aulas presenciais retornam esta semana, sem se seguir qualquer modelo de aula ao ar livre, mas com os estudantes dentro de salas de aula, com distanciamento de 1,5 m entre um e outro, com turmas divididas em dois grupos, sendo cada um composto por 50% da classe. No plano elaborado pelas escolas, há a previsibilidade de suspensão das aulas presenciais de acordo com o número de infectados e isso, pra mim, é muito triste, porque sinto como se minha vida não valesse nada. Aliás, sinto como se meu lugar como professora não valesse nada, em todos os locais pelos quais passei.

E, sim, 11 anos depois da primeira vez, novamente desisto de permitir tudo isso e, como bem me alertou uma amiga especial por demais, “chega de violências contra você”.

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