Analisa-se o livro a partir do percurso do personagem Eduardo e de sua vivência em duas cidades brasileiras: Belo Horizonte e Rio de Janeiro.
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RESUMO: O trabalho visa a analisar o romance O Encontro Marcado, de Fernando Sabino a partir da relação do personagem principal com os lugares do Brasil em que viveu. Os fatos da vida do personagem Eduardo têm como palco duas cidades brasileiras: Belo Horizonte/MG e Rio de Janeiro/RJ. A memória que Eduardo traz da Belo Horizonte de sua infância fazem-no conflitar-se com a cidade transformada de sua vida adulta, bem como interferir em sua relação com a cidade do Rio de Janeiro. Assim, busca-se pensar sobre questões referentes ao lugar: a origem e posterior ruptura com esta; o outro lugar e a consequente não pertença neste; a memória do lugar de origem e os conflitos de identidade a partir das transformações provocadas pelos habitantes deste. Ainda, reflete-se como o autor desenvolve a sua escritura. Teorias de diferentes campos do saber permitem ler o texto dentro da abordagem desejada.
Palavras-chave: Literatura. Lugar. Cidade. Memória. Identidade.
1. Introdução
O Encontro Marcado, do escritor Fernando Sabino, narra a relação do personagem principal com os lugares. Eduardo passa a infância e a adolescência em Belo Horizonte, cidade na qual se sente bem e vive uma vida tranquila. Porém, há uma ruptura com a cidade de origem, em virtude do casamento, e, a partir dela, ele passa a viver um conflito de identificação pessoal com o lugar novo e também com seu lugar de origem, e com as coisas destes lugares. A ruptura provoca inicialmente um sentimento de não pertença ao novo lugar, sentimento que se modifica com o passar do tempo. Não pertença sentida também na cidade natal quando anos mais tarde retorna a ela. Assim, fica evidente a importância do lugar físico na identificação pessoal para Eduardo, sendo que a presença do lugar na memória e nas lembranças vai moldando sua identidade. Neste sentido, esses dois lugares do Brasil norteiam a escrita literária de Sabino no romance e fazem do personagem uma constituição a partir dos espaços que frequentou.
Além disso, o romance tem uma relação bastante intensa com a biografia de Fernando Sabino, visto que muitos fatos da vida do autor condizem com situações do romance. Assim, na leitura da vida do personagem Eduardo se confundem os fatos narrados com acontecimentos conhecidos da vida do próprio autor, e com os lugares onde a narrativa transcorre. Entretanto, o que importa aqui é a imagem do lugar para o personagem Eduardo no sentido da interpretação do mesmo, e o lugar para o autor, dentro das categorias de romance existentes.
Desta forma, o presente trabalho visa a analisar como Eduardo reage perante os lugares, como os mesmos influenciam a construção de sua identidade, como a ruptura com o lugar de origem o faz vencer obstáculos e como a memória relaciona-se a isso. Também importa a constituição de cidade feita pelo autor através da literatura, já que se podem construir mapas imagéticos dos lugares através do texto lido. E, analisa-se a questão dos lugares na ótica do narrador em contraposição à análise do personagem. Para tanto, teorias de diferentes campos do saber permitem ler no texto os aspectos desejados. Tais textos auxiliam na compreensão dos relatos sobre lugares, sobre os deslocamentos e as imagens de cidade que o autor tenta transmitir ao leitor, sobre a memória, e também sobre a sensação de não pertença, abordando o espaço em si e sua múltipla influência sobre o indivíduo.
2. Belo Horizonte e Rio de Janeiro: o desencontro
A narrativa do romance O Encontro Marcado transcorre especificamente em dois lugares: a cidade de Belo Horizonte e a cidade do Rio de Janeiro, duas cidades cujas diferenças são fundamentais na vida de Eduardo, o personagem principal. Uma delas – Belo Horizonte – é o lugar onde Eduardo nasceu, e a outra – Rio de Janeiro – onde sempre viveu sua amada, Antonieta, e para onde se muda e vive seu amor, compartilhando a vida. Essa é a razão de sua viagem, de sua mudança de lugar.
A afinidade de Eduardo com Belo Horizonte é intensa, afinal, foi onde nasceu e cresceu, é onde moram seus familiares e amigos, e também onde se sente seguro porque conhece as ruas, os bairros, as pessoas. O Rio de Janeiro é o desconhecido, um lugar a explorar, a descobrir e onde, a princípio, Eduardo só conhece sua esposa e a família dela.
Na companhia dos amigos Hugo e Mauro, têm longas conversas sobre política, faz farras pela cidade – cantavam em plena rua, provocavam comícios (SABINO, 1984, p. 59). Sua amizade tão profunda, a imensa afinidade com Hugo e Mauro, estimula a identificação com os novos espaços que conquistam, de tal forma que encontra, neles, parceiros, companheiros para sua busca, amizade tal que fazia-os chorarem ao mesmo tempo (SABINO, 1984, p. 60).
No início da vida adulta, a faculdade de Direito e um trabalho no jornal, atividades que também influenciam sua relação com o lugar. Uma ânsia em mudar o mundo, a vontade de transformar em lugar decente, justo e bom para todos, contribuíram para as escolhas profissionais (SABINO, 1984, p. 70).
A relação de Eduardo com o seu lugar de origem, onde cresceu, era relação de afinidade. Mas, quando por fim conhece Antonieta, casa-se com ela e muda-se para o Rio de Janeiro, ele precisa recomeçar, redescobrir-se e descobrir cada espaço do novo lugar, tarefa à princípio não muito fácil, já que a mudança provoca sensações de não pertença, de aflição e angústia no novo lugar. Junto, uma lembrança constante, que teima em não desaparecer, do lugar de origem.
O movimento de reconhecimento e de identificação com esse novo lugar é árduo e cheio de conflitos. A memória que Eduardo faz de sua Belo Horizonte tornam o novo ainda mais difícil de ser constituído, estabelecido:
[...] a memória é, acima de tudo, uma reconstrução continuamente atualizada do passado, mais do que uma reconstituição fiel do mesmo: ‘a memória é de fato mais um enquadramento do que um conteúdo, um objetivo sempre alcançável, um conjunto de estratégias, um ‘estar aqui’ que vale menos pelo que é do que pelo que fazemos dele’ (CANDAU, 2012, p. 9).
Neste sentido, Candau (2012) também reflete sobre os “[...] laços fundamentais entre memória e identidade e sobre o fato de que é a memória, faculdade primeira, que alimenta a identidade” (p. 16). Ainda, “[...] é a memória, podemos afirmar, que vem fortalecer a identidade, tanto no nível individual quanto no coletivo: assim, restituir a memória desaparecida de uma pessoa é restituir sua identidade” (CANDAU, 2012, p. 16).
Na vida de Eduardo as lembranças serviam também para fortalecer sua identidade com Belo Horizonte e para impedir que seu mundo ficasse sem chão, sem um alicerce para ser apoiado. Quase como uma maneira de dar sentido à vida. Falta-lhe encontrar a identificação com o novo.
3. Belo Horizonte: a origem, a mãe, a água e a identidade
Belo Horizonte, a cidade natal de Eduardo, é pacata, simples: as ruas, o Bairro de Santo Antônio, o jornal, a praça, o banco da praça, as farras à noite, “[...] ao longe o sol que se escondia no horizonte [...]” (SABINO, 1984, p. 28).
O vínculo de Eduardo com este lugar é muito forte. Sua relação com ele é bastante intensa visto que a cidade é como que sua casa, pois nela estão as suas coisas, aquilo de que gosta, as pessoas que conhece e fazem parte de sua vida, a sua casa especificamente, o quintal da casa, ou seja, os lugares seus, e tudo com o que convive.
Aquela “[...] casa [que] tinha três quartos, duas salas, banheiro, copa, cozinha, quarto de empregada, porão, varanda e quintal” (SABINO, 1984, p. 9) era o lugar onde Eduardo se constituía enquanto indivíduo. A casa “[...] é o nosso canto do mundo. Ela é [...] o nosso primeiro universo”.
Além da casa, o quintal: o espaço onde brinca e faz suas descobertas, no qual tem contato com a natureza, com a terra, onde fica observando os pequenos seres que dividem o mundo com ele:
[...] que significava o quintal para Eduardo? Significava chão remexido com pauzinho, caco de vidro desenterrado, de onde teria vindo? Minhoca partida em duas ainda mexendo, a existência sempre possível de um tesouro, poças d’água barrenta na época das chuvas, barquinho de papel, uma formiga dentro, a fila de formigas que ele seguia para ver onde elas iam. Iam ao formigueiro. Um pé de manga-sapatinho, pé de manga-coração-de-boi. Fruta-de-conde, goiaba, gabiroba. Galinheiro. A galinha branca era sua, atendia pelo nome: – Eduarda! (SABINO, 1984, p. 9).
A cidade natal é a sua casa, a sua infância, suas brincadeiras no quintal, sua vida simples feita de pequenas coisas. Também é o lugar dos momentos alegres como “cantar em plena rua”, é “[...] uma casa, um barranco, um cavalo pastando, a cerca de arame farpado” (SABINO, 1984, p. 94), lugar de ir “[...] a pé do Largo do Machado à Praça Mauá” (SABINO, 1984, p. 27), é a Praça, o banco da Praça onde se encontra com os amigos e ficam a sós – “[...] a noite avançava e, de súbito, a Praça ficou inteiramente deserta. Fora-se o último casal de namorados e só restaram os três, no banco de sempre: o coreto vazio, o busto de D. Pedro II, o repuxo no lago” (SABINO, 1984, p. 69) –, ou seja, a cidade natal é o lugar das coisas simples, é uma cidade simples. Mas também uma cidade não pequena, graças à “[...] avenida movimentada”, à “[...] saída dos cinemas” (SABINO, 1984, p. 92).
Através das imagens de Belo Horizonte descritas por Sabino, os leitores vão como que acompanhando o percurso de Eduardo pelo lugar. Cria-se na interpretação do leitor um mapa que pode não compreender a cidade inteira, mas que localiza o personagem no espaço: o Largo, a Praça, a avenida movimentada, o cinema...
Em Belo Horizonte, Eduardo pratica natação, esporte no qual, para ele, não depende de ninguém a não ser dele (SABINO, 1984, p. 34), e ele é o
[...] único nadador que não interrompia os treinos no inverno, sozinho, a água gelada, a piscina fechada aos sócios. Tudo importava: a temperatura da água, a raia que lhe caberia, as condições do adversário. Já o tinha sob controle, sabia o que deveria fazer desde a saída – sabia que deveria esquecê-lo tão logo começasse a nadar, esquecer a assistência, nadar apenas contra o cronômetro (SABINO, 1984, p. 35).
Na água, ele tem o controle das coisas, já que “[...] a água serve para naturalizar a nossa imagem, para devolver um pouco de inocência e de naturalidade ao orgulho da nossa contemplação íntima” (BACHELARD, 1989, p. 23). A água exerce quase que o mesmo sentido que o quintal para Eduardo: são lugares em que pode recuperar um pouco de inocência e de naturalidade.
Além disso, “[...] dos quatro elementos, somente a água pode embalar. É ela o elemento embalador. Este é mais um traço de seu caráter feminino: ela embala como uma mãe” (BACHELARD, 1989, p. 136).
Pode-se pensar na mãe também como origem e como porto seguro, portanto, o lugar de origem seria também um porto seguro. Pode-se pensar na mãe genitora, progenitora, produtora, e por isso, na mãe como útero. Pode-se pensar na água do útero. E a origem está no útero, na água. O útero é o porto seguro durante o tempo da gestação. O útero é a origem de tudo. A origem é um porto seguro. A identidade de Eduardo com a água reflete sua vivência no útero durante o período de gestação de sua mãe, sua origem, sua identificação com o lugar de origem, com a cidade de Belo Horizonte, com a mãe que embala, a mãe que está em Belo Horizonte – a cidade-mãe, a cidade-natal –, a mãe que é sua origem. “A água tem seu poder maternal” (BACHELARD, 1989, p. 153).
Apesar de Eduardo conseguir se identificar com as coisas, ele é alguém que vive em conflito permanente, numa busca incansável pela identificação pessoal. A amizade com Hugo e Mauro, e os encontros constantes com os dois, é uma longa etapa nesta busca da identidade, da percepção de um “eu”. Eles são os amigos de juventude com os quais se completa, com os quais entabula longas conversas, os três com objetivos comuns, um ideal comum, uma identidade afim.
O banco habitual da Praça, no qual costumam sentar, é parte integrante da identidade não só dele, mas também de seus amigos: era preciso ser naquele banco, o banco deles, era ali que se sentiam em casa para conversar o que quisessem. A imagem daquele banco é parte deles como um lugar a ir, a estar e partilhar momentos (SABINO, 1984, p. 68).
Ao citar o banco da praça, Sabino demonstra o quanto a presença do lugar está em cada decisão que Eduardo toma, em cada momento de sua vida. A Praça de Belo Horizonte é um lugar importante em sua vida, tanto nos momentos alegres com os amigos, quanto nos momentos de decisões e reflexões. É no banco da Praça que ele conversa com os amigos, e também é no banco que ele procura acalmar-se e refletir sobre a vida, sobre suas decisões.
Com os amigos, Eduardo se identifica, quase como se identifica com a água. Mas, de algum modo, há uma ruptura – a natação já não o satisfaz:
[...] Eduardo saiu d’água, enxugou-se, agradeceu os cumprimentos, despediu-se e deixou a piscina para sempre. De súbito, a caminho de casa, lágrimas de raiva e despeito saltaram-lhe dos olhos. Era um choro nervoso e sem sentido, odiava a si mesmo e o que fizera. Tudo aquilo, afinal, para quê? Tanto sacrifício! Perdera tempo, esquecera os amigos, os livros, a literatura quase de todo abandonada. Sentou-se num banco da Praça, buscou acalmar-se olhando os jardineiros que, indiferentes, aparavam a grama no jardim. Eles, sim, sabiam viver. Nenhuma pressa, nenhuma aflição: obedeciam ao ritmo que lhes era imposto, harmonizavam-se à ordem das coisas ao redor. Era como se ele, apenas ele, excedendo a si mesmo, num movimento brusco saltasse fora da engrenagem e, desgovernado, pudesse ver de longe o mundo pacífico e feliz de que não sabia participar (SABINO, 1984, p. 133).
A água é o lugar do Eduardo jovem assim como o quintal é o lugar do Eduardo menino, ambos relacionados à casa, à origem, à mãe. Pode-se de certa forma relacionar isso com a sensação de Marco Pólo ao visitar a cidade de Dorotéia:
[...] ‘Aquela manhã em Dorotéia senti que não havia bem que não pudesse esperar da vida.’ Raramente uma cidade hoje nos dá essa sensação, que às vezes buscamos numa mulher, num livro, numa festa, embora isso se revele a cada dia mais raro: que ela evoque um mundo possível e ainda desconhecido. [...] Kublai Khan acaba descobrindo, ao longo do tempo, o que Marco Pólo vai buscar nessas cidades invisíveis, o que é que ele traz delas: ‘...confesse o que você contrabandeia: estados de ânimo, estados de graça, elegias’ (PELBART, 2000, p. 49).
Enquanto Marco Pólo sente-se em estado de graça com relação a cidades desconhecidas, lugares a serem explorados, Eduardo sente-se em estado de graça nos espaços da sua cidade. A relação de Eduardo com o lugar pode ser comparado aos mesmos estados de ânimo, estados de graça, elegias dos quais falava o imperador.
4. Rio de Janeiro: o não lugar, a mulher, a memória e a identidade
O lugar – ou talvez o não lugar, pelo fato de não adaptar-se – do Eduardo adulto é o Rio de Janeiro. De certo modo, há uma relação bastante intensa também neste outro lugar com a natação: na natação nunca se está num lugar determinado, sempre se está buscando um lugar mais à frente. Este percurso empreendido por Eduardo na natação pode ser comparado a sua vida: num momento ele está num certo espaço e logo em seguida não está mais. Este lugar, ou talvez, este não lugar é o lugar de Eduardo, lugar sempre a ser percorrido, mais ou menos como o definiam seus amigos: seu ar de quem está sempre indo a um lugar que não é aqui.
Todos os elementos que caracterizam o lugar Belo Horizonte não se configuram no Rio de Janeiro, de tal forma que cada aspecto é novo, diferente. A ida definitiva de Eduardo para o Rio de Janeiro, e sua ruptura com Belo Horizonte, ocorre por causa de Antonieta. Antes disso, ele já tinha ido algumas vezes visitar a namorada, e ainda com o pai, quando menino. Para o menino de Belo Horizonte, o Rio de Janeiro é um lugar muito diferente do lugar de onde ele vem. É o lugar de pontos turísticos, o lugar exótico. “Passearam pela cidade, foram ao Pão de Açúcar. Seu Marciano conhecia o Rio mas nunca tinha ido ao Pão de Açúcar.” (SABINO, 1984, p. 27).
Na época do namoro, o Rio de Janeiro era visto como a cidade grande – “[...] a existência das praias” (SABINO, 1984, p. 97) –, com bares ao longo da praia, prédios altos, uma vida agitada, cheia de compromissos. Lá Eduardo sente-se distante, “[...] esmagava-o a consciência de uma vida mais rica, movimentada, complexa, que Antonieta levaria, vida a que jamais teria acesso, e que o humilhava” (SABINO, 1984, p. 97). “[...] Grupo de moças e rapazes estendidos na areia da praia, Antonieta no meio deles. Eduardo constrangido, sorriso forçado a cada fase da conversa sem rumo de que não chegava a participar” (SABINO, 1984, p. 108). Tudo agora diferente. A sua cidade interiorana nada tem de semelhante com essa cidade litorânea; apenas novidades: as praias, as pessoas, a vida agitada, as conversas. O Rio de Janeiro é a capital, um lugar de política, de status. É também uma cidade tropical, quente, litorânea, um Brasil diferente do seu Brasil profundo, da sua cidade interiorana, sem praias e totalmente diverso numa primeira imagem do novo lugar.
A relação com Antonieta sendo construída, a cidade grande e tão diferente, amigos diferentes, maneiras diferentes de viver também são motivos de conflito constante para Eduardo. Por mais que goste de Antonieta, há uma dificuldade imensa em adaptar-se à vida e aos costumes dela. Essa não identificação com o mundo dela faz dele um rapaz insatisfeito, irrequieto, triste; toma conta dele certo sentimento de não pertença, a sensação de estar num ambiente que não acolhe seu corpo:
[...] regressou a Belo Horizonte dois dias depois, num trem cheio de retirantes. Sua cabeça fervilhava, tinha o corpo moído de cansaço: estivera com ela, é verdade, mas foram dois dias e duas noites de permanente agitação: festas, recepções, banquetes, solenidades, nas quais a moça sempre arranjava jeito de incluí-lo, em meio a oficiais-de-gabinete, autoridades, jornalistas, admiradores. – Essa gente não serve para você – queixou-se ele, num dos raros momentos em que se viram a sós. – Essa vida que você leva... (SABINO, 1984, p. 123).
Os locais frequentados por Antonieta não condizem com os lugares com os quais Eduardo está habituado, a vida dela nada tem a ver com a vida tranquila que ele levava. Não há mais familiaridade com as coisas. Mas, acima de tudo, ainda não há amor pelo lugar. Haverá um dia? Como saber? Mas,
[...] o amor é, pois, à maneira de Platão, a condição do conhecimento. Só quem ama é capaz de perceber uma cidade dessa maneira. Pelo olhar [de Benjamin], escreve W. Bolle, a capital russa, em pleno inverno, ganha uma dimensão feérica. Cores, formas, flores, gostos, doces e mil facetas da sensualidade – tudo existe numa maravilhosa abundância de um pays de Cocagne. Surrealisticamente, o céu moscovita passa a ter cores sulinas e, a 25 graus abaixo de zero, a cidade parece um alegre porto mediterrâneo. [...] O registro dos dados meteorológicos vai ao encontro dos valores da agitada temperatura emocional. [...] Aqui o protagonista se debate em lutas contra o fogo de dentro e o frio de fora (MAGALHÃES, 1995, p. 24).
Bolle escreve sobre as impressões da capital russa para Benjamin, impressões essas motivadas por um sentimento interior muito forte, de amor pela cidade. Assim também é o amor que Eduardo sente pela cidade de Belo Horizonte, esse amor que o faz perceber somente Belo Horizonte como sua cidade, como o seu lugar, relação que o impede de sentir algo de bom pelo Rio de Janeiro, e de identificar-se com esta outra cidade num primeiro momento. Cidade que o deixa insatisfeito, contrariado, desconfortável.
Essa insatisfação com o mundo – a cidade que é o mundo, já que a casa é o ninho, o lugar de aconchego – e consigo mesmo é percebida também por ele mesmo. Como se só ele não participasse do mundo pacífico e feliz. “[...] O que se passava com ele? Sua inquietação, sua vontade de encerrar uma fase da vida e inaugurar outra era algo que saltava aos olhos de todos” (p.136). Além dele, também as pessoas à sua volta o estranham. Seu próprio pai declara: “Eduardo – disse afinal: – Não sei, às vezes tenho a impressão de que você é apressado demais, para tudo: fala depressa, anda depressa, pensa depressa.” (SABINO, 1984, p. 139). Como se ele simplesmente passasse pela vida e não vivesse realmente, não usufruísse as coisas da vida, não participasse da vida, como se fosse para algum lugar, como se apenas fosse parte do mundo, mas não participasse dele.
O dia do casamento também é outro momento de conflito. Há a sensação de um aconchego, de um lar, o lar que é constituído com a mulher; mas junto com a mulher – a sua nova casa – vêm todas as coisas diferentes das de sua vida anterior:
[...] Eduardo mudou-se para o Rio, tomou posse no emprego que o ministro lhe arranjara, e viu, num misto de apreensão e deslumbramento, aproximar-se o grande dia. Teve de enfrentar, depois da cerimônia, o longo desfile de cumprimentos de gente que via pela primeira vez (SABINO, 1984, p. 142).
Com o casamento, a construção de um mundo diferente do seu. Ao mudar-se definitivamente, a imagem negativa do Rio de Janeiro é recorrente: as diferenças tão evidentes, um lugar maior, uma vida mais rica, movimentada – que o humilhava! (SABINO, 1984, p. XX) –, diferente da sua vida simples de Belo Horizonte. Era preciso conquistar de novo os espaços.
A causa da ruptura de Eduardo com o seu passado – Antonieta – é ela mesma agora sua nova casa, seu novo lugar. É por ela que ele se desloca. Configura-se aqui a esposa numa outra origem.
Mas, ainda que Antonieta – a mulher, a nova casa, a nova origem – exerça uma força muito maior do que o seu primeiro lugar de origem, Eduardo sabe do risco de não se adaptar. Tudo o que ele apreende sobre esses dois lugares fica gravado na sua memória. Tal apreensão a respeito de diferentes lugares se dá pela configuração de imagens. Imagens pessoais. Ao escrever sobre as lembranças que cada ser humano guarda do lugar onde nasce e vive e que tornam a cidade, o lugar, importante para aquela pessoa, Barros (1999) diz que:
[...] a importância da cidade se faz sentir nas lembranças não como entidade em abstrato, mas como experiência de vida. Esta experiência recorta a cidades em pedaços, fazendo de um bairro, de brincadeiras de crianças, de jogos de futebol em terreiros baldios do subúrbio do Rio, a própria cidade.
É como se Eduardo dissesse “o pedaço é a cidade, aqui é meu lugar, e o meu lugar está diretamente ligado com a memória que tenho do lugar”. A experiência que Eduardo tem em determinado lugar faz com que ele seja lembrado e descrito daquela forma específica. Isto se associa diretamente às imagens de Eduardo dos seus lugares: Belo Horizonte é onde ele viveu sua infância, onde tem o controle das coisas, onde viveu sua juventude, onde ele cresceu e compartilhou muitos momentos com seus amigos e familiares; o Rio de Janeiro é o lugar a ser descoberto, o lugar onde é preciso vencer a timidez, a insegurança, para poder participar dele. No Rio de Janeiro, a princípio, ele só conhece sua mulher, a qual se torna sua nova casa. Mas apenas esta casa neste novo momento já não basta. É preciso identificar-se com o lugar como um todo.
Além disso, “[...] a memória constitui nossa vida” (CANDAU, 2012, p. 15). Assim, não ainda a vida no Rio de Janeiro para Eduardo, pois não há memória suficiente de fatos ali.
Para dificultar mais as coisas, Eduardo é percorrido por um sentimento levemente persecutório, como se outros, e não ele próprio, controlasse sua vida – já não era dono de si mesmo:
[...] tudo acontecia numa sequência rápida, sem trégua, mal ele tinha tempo de acomodar-se a uma transformação em sua vida, e logo vinha outra, ainda maior. Que viria agora? – ele se interrogava, sem saber o que fazer de si, pela primeira vez sozinho, quando ela enfim, alegando cansaço, recolhera-se mais cedo. Sentia vagamente que se tornara instrumento de desígnios outros, poderosos, desconhecidos – já não era dono de si mesmo (SABINO, 1984, p. 143).
Na constante busca por si, por entre indecisão e incerteza, ele permite sem se aperceber, que os outros conduzam a sua vida. Tardiamente, ele chega à conclusão de que precisa mudar, precisa tentar recomeçar. Reflete: “era preciso ir devagar – saber envelhecer”, mas se depara com uma falta de ação, com uma conformidade com as escolhas dos outros. A mudança que implementara não o levava a lugar algum. “[...] A vida o afastava de sua origem, de seus amigos. Já nem sempre estaria presente na lembrança deles, o tempo o empurrava com força demais e isso era terrível” (SABINO, 1984, p. 144). Entretanto, Eduardo nada fazia para mudar tal situação.
Além da incerteza e dos conflitos pessoais, as lembranças do passado:
[...] ai, Minas Gerais, já ter saído de lá, tuas sombras, teus noturnos, teus bêbados pelas ruas, Eduardo Marciano, minha mágoa, minha pena, minha pluma, merecias morrer afogado, o barco te leva para longe, a praia está perdida, mas voltarás nem que tenhas de andar sobre as águas (SABINO, 1984, p. 144).
A identificação pessoal está claramente associada ao que já viveu. Eduardo, porém, persiste em tentar:
[...] Vontade de me mudar do Rio, ir para um lugar sossegado, ter um filho, criá-lo longe daqui, constituir uma família, compreende? Levar uma vida decente. Não nasci para isso. Só você, que me conhece melhor, pode me compreender. Nós somos diferentes um do outro, eu sei; mas você sabe que eu não nasci para isso. Eu queria ser um homem simples, direito... Um homem como meu pai (SABINO, 1984, p. 170).
A decisão de mudar, de recomeçar, o desejo de ter um filho e de ser um homem simples, como seu pai, fazem com que “[...] [se transfiram] para um apartamento maior, em Botafogo. Aos poucos tudo ia se acomodando: tomavam gosto pelo lugar, mandaram reformar os móveis, decorar as salas. O esforço que ele fazia era o de quando voltara a nadar, anos antes. Desta vez haveria de vencer” (SABINO, 1984, p. 179).
Novamente a mudança física ligada à identificação pessoal de Eduardo. Ele mesmo entende que “[...] é não parar, ir tocando para frente. O que ficou para trás, ficou, não interessa. Recolher os despojos do naufrágio e deles fazer um barquinho, sair remando” (SABINO, 1984, p. 180).
O aconchego das coisas simples também contribuiu para momentos mais tranquilos:
[...] Eduardo se alegrava com a mudança que sentia na mulher. Já não queria sair, ir tanto ao cinema, passear em Copacabana. Preferia ficar em casa à noite, lendo as revistas que lhe trazia. Enfim, pareciam constituir um casal feliz. Eduardo fazia planos literários – um livro de ensaios, por que não? Faltava um crítico à sua geração, não era isso mesmo? Antonieta pensava em aprender alguma coisa, tomas aulas particulares – costura, datilografia, francês, ginástica, culinária. [...] Essa era a felicidade, pois. A rotina não sendo afinal o temido fantasma do tédio, mas a ordem, o equilíbrio, a permanência tornados hábito (SABINO, 1984, p. 188-189).
Nessa calmaria, a sensação de paz. É como se a identidade pessoal de Eduardo estivesse ligada diretamente a uma vida simples, pacata. São imagens condizentes com uma vida simples e pacata, como a de Belo Horizonte, que ele parece precisar.
5. Belo Horizonte e Rio de Janeiro: a memória e a mudança da primeira origem
Junto à adaptação de Eduardo à cidade do Rio de Janeiro, à conquista de um novo lugar, de novos espaços, vêm as lembranças do outro lugar, do lugar de origem, do lugar que não é mais de Eduardo, do lugar que ele deixou para trás. Ao escrever detalhadamente sobre o processo do lembrar e da memória, Bosi (2006) nos diz que
“lembrar-se”, em francês se souvenir, significaria um movimento de “vir de baixo”: sous-venir, vir à tona o que estava submerso. Esse afloramento do passado combina-se com o processo corporal e presente da percepção: “aos dados imediatos e presentes dos nossos sentidos nós misturamos milhares de pormenores da nossa experiência passada. Quase sempre essas lembranças deslocam nossas percepções reais, das quais retemos então apenas algumas indicações, meros ‘signos’ destinados a evocar antigas imagens (p. 46).
Este lembrar-se também pode ser provocado pela presença. Tanto que em uma de suas idas a Belo Horizonte, o estar ali traz saudades do tempo que já passou, saudades das conversas com os amigos. O fato de estar só contribui para permitir o retorno, bem como para intensificar vontades de coisas antigas.
Paralelo à adaptação ao Rio de Janeiro há uma nova ruptura, ruptura com o lar, com a mulher, sua esposa, visto que Antonieta separa-se dele. Ao tentar mudar o outro para que o eu se identifique, há o risco da não adaptação daquele. Assim, é a esposa quem escolhe a ruptura como alternativa final. E para Eduardo, o retorno:
[...] revia-se solteiro, morando em Belo Horizonte, em sua própria casa. Afinal, o tempo não havia passado, ali estava ele de novo... Durante a noite chorava como antigamente, no seu quarto de antigamente, abafando os soluços no travesseiro. Não sabia por que chorava: se pela morte do pai, pela solidão em que vivera sua mãe, ou por si mesmo. Afinal, não conto mais com ninguém – pensava. Nem com meus amigos, nem com meu pai, nem com minha mulher, nem comigo mesmo. Estou sozinho, não há salvação. Nem conseguiu ter com Mauro e Hugo os momentos que esperava: nem um encontro fecundo, nem ao menos uma conversa, um diálogo como os de outrora. Não sabia o que acontecera: se a morte do pai o traumatizara, se eles é que haviam mudado – o certo é que, juntos, já não eram os mesmos (SABINO, 1984, p. 172-173).
Mas ali, em Belo Horizonte, ele já não pode encontrar suas coisas. Quando Eduardo deixa Belo Horizonte, a cidade está em crescimento, é um lugar em fase de mudança, e por isso agora “[...] encontrou a cidade diferente, mudada. Agitação pelas ruas, prédios novos, gente andando para lá e para cá, como se realmente tivesse urgência de ir a qualquer parte. Os elevadores funcionavam todo tempo” (SABINO, 1984, p. 237).
Entretanto, é com a ruptura da imagem mais íntima que tem da cidade, que Eduardo experimenta a não pertença àquele lugar. Quando vê a Praça:
[...] nada importava mais, senão que haviam acabado com o banco da Praça. O novo prefeito fizera um estrago no jardim, pondo abaixo as belas touceiras de antigamente, substituindo tudo por uma grama rasa, bem aparada, ridícula. Os bancos agora eram de mármore, como túmulos. Nada mais o ligava àquele lugar (SABINO, 1984, p. 237).
A desolação é imensa. O seu lugar não é mais o mesmo. A imagem de Belo Horizonte que tinha guardada em sua mente não coincide mais com o real. Para Bosi (2006), com certeza o lembrar-se daquilo que não existe mais traz certo desconforto,
[...] a frase ‘já não existe mais’ dilacera as lembranças como um punhal e, cheios de temor, ficamos esperando que cada um dos lembradores não realize o projeto de buscar uma rua, uma casa, uma árvore guardadas na memória, pois sabemos que não irão encontrá-las nessa cidade onde os preconceitos da funcionalidade demoliram paisagens de uma vida inteira (BOSI, 2006, p. 19).
Sensação semelhante atribui-se a Eduardo: um dilaceramento, um temor ao não encontrar aquilo que procura. Sobre essa relação do homem com o espaço pode-se atentar que:
[...] o passado passou, e só o presente é real, mas a atualidade do espaço tem isto de singular: ela é formada de momentos que foram, estando agora cristalizados como objetos geográficos atuais; essas formas-objetos, tempo passado, são igualmente tempo presente enquanto formas que abrigam uma essência, dada pelo fracionamento da sociedade total. Por isso, o momento passado está morto como tempo, não como espaço; o momento passado já não é, nem voltará a ser, mas sua objetivação não equivale totalmente ao passado, uma vez que está sempre aqui e participa da vida atual como forma indispensável à realização social (SANTOS, 2004, p. 14).
As coisas do passado estão mortas como tempo, não como espaço, mas parece que Eduardo não pode compreender seu lugar assim. As lembranças o atormentam. Por mais que queira esquecer as coisas do passado, ele não consegue. Parece que ele quer voltar o tempo, criar uma dobra no tempo, para conviver com seus amigos, para reviver com suas coisas. A lembrança é a força constante na vida de Eduardo.
[...] Voltou ao Rio desgostoso, em vão tentou esquecer os amigos. Eles que se danem! Por que não vieram também? Mas acabava escrevendo a ambos longas cartas, quando à noite a lembrança deles o perseguia, tirando-lhe o sono (SABINO, 1984, p. 189).
Ao mesmo tempo em que não consegue esquecer, Eduardo luta para ser capaz de retornar, para não perder os vínculos afetivos, e isso o faz escrever reiteradamente aos seus amigos, o faz retornar a Belo Horizonte. Para Bosi (2006):
[...] a memória permite a relação do corpo presente com o passado e, ao mesmo tempo, interfere no processo “atual” das representações. Pela memória, o passado não só vem à tona das águas presentes, misturando-se com as percepções imediatas, como também empurra, “desloca” estas últimas, ocupando o espaço todo da consciência. A memória aparece como força subjetiva ao mesmo tempo profunda e ativa, latente e penetrante, oculta e invasora (SABINO, 1984, p. 47).
Através da memória, todo o passado de Eduardo vem à sua mente, ocupa sua consciência e, por vezes, ele acaba vivendo em função de suas lembranças. O desejo de voltar no tempo, de reviver certos momentos, de voltar ao passado, teimam em ocupar totalmente seu pensamento e fazem-no viver em função de suas faltas. Se nossa memória é feita de presenças, é feita também dessas faltas. Fischer (s.d.) nos diz que:
[...] de tudo que vivemos, uma parte muito pequena permanece conosco, na forma de uma lembrança que pode ser mobilizada a qualquer momento, ou sob o aspecto de uma rememoração que nos volta apenas mediante muito esforço, ou com o disfarce de um gosto involuntário que não conseguimos controlar e que nasceu lá, naquele passado mais ou menos encoberto. Tirando esta pequena parte, todo um oceano de vivências, dolorosas ou gentis, calorosas ou áridas, permanece longe de nosso alcance (p. 4).
Ou seja, parece que as lembranças de Eduardo são o que Fischer define como um gosto involuntário que não conseguimos controlar, uma constante que não consegue deixar a mente de Eduardo e que o atormenta na busca de uma identificação consigo mesmo e com o mundo. As lembranças de tudo o que passou fazem com que Eduardo sinta um desejo imenso de retornar ao passado, por mais que tenha se adaptado à cidade na qual vive agora. É como se não fosse mais o lugar onde vive que o estivesse atormentando, mas as coisas que faz e que devem ser diferentes, como se as coisas pudessem ser descoladas do lugar.
Depois de tanta busca por uma identidade no Rio de Janeiro, é como se ele visse na volta a Belo Horizonte um motivo para tentar resgatar o tempo perdido, para reviver fases de sua vida. Nessa tentativa, ele se depara com o que disse Bosi – que ele não procure aquilo que não vai achar. Mas, ele insiste e seu mundo desaba quando ele encontra o lugar mudado, quando não encontra mais as imagens de sua adolescência, os lugares que foram palco de tantas alegrias (SABINO, 1984, p. 237-238).
Para Eduardo as mudanças também provocam uma sensação de não reconhecimento. Para ele não havia mais o que fazer a não ser se afastar. Mas, num desejo de não esquecer por completo, ele faz uma visita a lugares importantes de sua vida. Na tentativa de reter as imagens, de refazê-las. Quase que um último adeus. “E foi ao Ginásio, ao encontro marcado [...] O prédio, assim fechado, pareceu-lhe triste e envelhecido – não havia alunos, estavam em férias” (SABINO, 1984, p. 241). Em suas andanças, “[...] passou pela piscina do clube, também vazia [...] Não há o que ver. No quadro de honra do clube seu nome fora substituído. Está em construção uma nova arquibancada que comportará o dobro de espectadores” (SABINO, 1984, p. 242). Ao final, “[...] saiu da cidade como de um cemitério” (SABINO, 1984, p. 242), deixando todas as coisas para trás, retendo novas imagens daquele lugar – que não mais é dele – e que deixa para trás, rumo ao novo:
[...] as mudanças na cidade são verificadas nas transformações dos espaços e dos costumes apreendidos por um olhar que não consegue mais reconhecer a cidade como sua, trazendo não só estranhamento mas insegurança. Pergunta-se direta e indiretamente: “quem sou nesta cidade?”; ou “que lugar é este que não reconheço mais?” (BARROS, 1999, p. 80).
É possível aproximar a história de vida de Eduardo com o livro sobre memória e sociedade, de Bosi (2006), através dos relatos da vida de algumas pessoas, as quais contam sobre sua infância, adolescência, juventude, casamento, trabalhos, contam enfim, suas histórias. Eminente na história de cada um destes indivíduos, também está um pouco da história da cidade, do lugar no qual viveram. E ao ler trechos como os referidos abaixo, percebe-se o quão inerente está em um indivíduo o lugar em que viveu, o quanto se pode ler do lugar no indivíduo, como se o lugar emanasse do corpo:
[...] o centro da cidade de São Paulo só tinha dois viadutos; [...] conheci São Paulo como uma cidade provinciana; hoje qualquer bairrozinho de São Paulo tem mais habitantes do que a São Paulo que conheci; [...] a avenida São João começou só em 1911 e levou vinte anos para se fazer; [...] uma ocasião, no Teatro Santana, hoje demolido, representei uma ópera de Puccini; [...] quem tocava o único hotel de Santos, o Parque Balneário, era uma italiana; [...] nosso pai nasceu em São Pedro e São Paulo do Ribeirão das Lajes, cidade que desapareceu com a represa das Lajes; [...] o ginásio cheio de aparelhos para esporte e o jardim foram destruídos pela avenida São Luís; [...] naquele tempo quem vinha a São Paulo tinha que visitar três lugares: o Museu do Ipiranga, a Escola Normal e o Butantã. É o que havia para mostrar; [...] havia um jornal que ficava na esquina do viaduto com a rua Libério Badaró, onde hoje é o Matarazzo; [...] a minha casa não existe mais, aquilo foi tudo vendido e loteado.
O entristecimento com a mudança do lugar de origem, o sentimento de não pertença identificado nos personagens de Bosi, é semelhante à tristeza que Eduardo sente ao deparar-se com sua cidade natal modificada: o lugar do qual se lembrava tão bem estava diferente. Os idosos com muitas histórias para contar, do livro de Bosi, não se sentem mais pertencentes ao lugar no qual sua São Paulo tornou-se hoje, assim Eduardo também não se sente mais pertencente a Belo Horizonte, que não é mais a sua Belo Horizonte. Eduardo perdeu sua cidade.
O livro de Williams (1989), O campo e a cidade na história e na literatura, é um belo tratado das coisas perdidas, das coisas não mais achadas que outrora constituíam determinado lugar. Ele diz que:
[...] Ó pastos idos, perdida beleza!; Lá, livre, verdejava a natureza [...]; Onde pastavam soltos pelo prado; O trêfego cordeiro, o boi pesado [...] – lado a lado com a terra mais virginal que está sendo diretamente afetada:riachos desviados, salgueiros abatidos, nos trabalhos de drenagem e desmatamento. Um século e meio depois, reconheço o que Clare descreve: árvores específicas e um determinado riacho onde brinquei na infância desapareceram exatamente desse modo, em anos recentes, numa operação de melhoramento de terras não aproveitadas. Mas é preciso questionar o que representa extrapolar essa observação – a de que algo foi perdido em troca de algo que foi ganho – e concluir que o que se perdeu foi a “Natureza”. Não se trata apenas da perda do que pode ser chamado – às vezes com razão, às vezes só por afetação – de “natureza intata”. Para qualquer homem em particular, há também a perda de uma paisagem especificamente humana e histórica, que gera sentimentos não por ser “natureza”, e sim por ser “natal”: terra natal que cada vez mais amo! [...]; E tudo aquilo que pertence a ela –; Um velho mourão, ou pedra singela; Verde de limo – me faz desejar; Que tudo fique sempre onde está; E dói-me ver que as coisas mais queridas; De seu lugar já foram removidas. Assim, a perda mais lamentada – a das “coisas mais queridas” – é a perda da infância causada pela destruição da paisagem imediata (p. 193-194).
É a mesma sensação que Williams descreve, a sensação de que o que importa não é o que se perde, mas que aquilo é parte da infância dele, de tal forma que um pedaço da infância é perdido, a sensação de Eduardo ao ver o lugar no qual viveu profundamente mudado, modificado – a sensação de que um pedaço de sua vida está perdido. Tal sensação compara-se ao sentimento de tristeza que aflora os velhinhos do livro de Bosi (2006).
Outro autor que trata de cidades, Calvino (1991), nos apresenta um elemento que torna a questão mais complexa e, ao falar da cidade de Zora, diz que “foi inútil a minha viagem para visitar a cidade: obrigada a permanecer imóvel e imutável para facilitar a memorização, Zora definhou, desfez-se e sumiu. Foi esquecida pelo mundo” (p. 30).
O sentimento de não pertença que aflora quando a cidade muda, quando a cidade natal se modifica é resultado do processo natural de evolução das cidades: as mudanças são necessárias para que as cidades não parem no tempo e não sejam esquecidas, abandonadas, substituídas.
O lugar é como se fosse um espelho de nós mesmos, ou melhor, um espelho daqueles que habitam o lugar. Neste sentido, “[...] também o espaço sofre os efeitos do processo: a cidade torna-se estranha à região, a própria região fica alienada, já que não produz mais para servir às necessidades reais daqueles que a habitam” (SANTOS, 2004, p. 29). Cada local servir às necessidades reais daqueles que a habitam. Como Eduardo sai de Belo Horizonte, ele não é mais alguém para quem a cidade deva continuar servindo. Outros ocupam seu lugar e deixam posteriormente o lugar de acordo com suas necessidades. Mas Eduardo congela a cidade na memória e quer que ela esteja da mesma forma que a deixou quando a ela retorna.
A questão toda é que Eduardo precisa saber lidar com o lugar, lidar com as lembranças, com a memória e com o presente, lidar com a imagem que guarda da cidade que deixou para trás. E encontrar o equilíbrio dos tempos, pois
[...] não tem sentido livrarmo-nos do passado para pensar apenas no futuro. Até o fato de nisto acreditar já é uma ilusão perigosa. A oposição entre passado e futuro é absurda. O futuro não nos traz nada; não nos dá nada: somos nós que, para construí-lo, temos de dar-lhe tudo, dar-lhe até a nossa vida. Mas para dar, é necessário possuir; e nós não possuímos outra vida, outro sangue, além dos tesouros herdados do passado e dirigidos, assimilados, recriados por nós. Entre todas as exigências da alma humana nenhuma é mais vital que a do passado. (WEIL apud BRANDÃO, 1999)
Eduardo deveria ter assimilado e recriado o seu passado, afinal, o passado é necessário para que ele viva o futuro. É sim preciso que Eduardo volte – como o Ulisses, que volta para manter a memória:
a luta de Ulisses para voltar a Ítaca é, antes de tudo, uma luta para manter a memória e, portanto, para manter a palavra, as histórias, os cantos que ajudam os homens a se lembrarem do passado e, também, a não se esquecerem do futuro (GAGNEBIN, 2006, p. 15).
Eduardo deve manter a memória das coisas do passado para construir o futuro. Mas cabe ainda dizer que ele deve voltar como se fosse conhecer o lugar pela primeira vez. “[...] Não devemos deixar de explorar. E o fim de todas as explorações será chegar onde começamos e conhecer o lugar pela primeira vez” (T.S. ELLIOT, XXXX, p. XX). Mas, deixar de lado a imagem que guarda do lugar e estar aberto a uma nova imagem, como se estivesse ali pela primeira vez.
6. Belo Horizonte e Rio de Janeiro: o lugar no romance de Fernando Sabino
No que se refere à escritura do romance, consideradas as características da narrativa de cidades, de lugares, e do tipo de romance, num primeiro momento, pode-se dizer que, de certa forma, as imagens individuais de Eduardo, para cada um dos lugares descritos – Belo Horizonte e Rio de Janeiro – são também imagens coletivas, pertencentes a um grupo de pessoas que vive ou frequenta aquele ambiente e experimenta sensações e acontecimentos semelhantes. Ou seja,
parece haver uma imagem pública de qualquer cidade que é a sobreposição de imagens de muitos indivíduos. Ou talvez haja uma série de imagens públicas criadas por um número significativo de cidadãos. Tais imagens de grupo são necessárias, quando se pretende que um indivíduo opere de um modo bem sucedido dentro do seu meio ambiente e coopere com seu companheiros. Cada indivíduo tem uma imagem própria e única que, de certa forma, raramente ou mesmo nunca é divulgada, mas que, contudo, se aproxima da imagem pública e que, em meios ambientes diferentes, se torna mais ou menos determinante, mais ou menos aceite (LYNCH, 1970, p. 57).
Assim, a imagem que Fernando Sabino nos demonstra de suas cidades está contaminada pelas posições sociais, culturais de Eduardo e Antonieta, mas, ao mesmo tempo, esta imagem individual se aproxima da imagem pública, pois tem características comuns a todos.
Neste sentido, tem-se que as memórias de cada indivíduo particular compõem a memória do local em que viveu, assim como as memórias dos demais constituintes do grupo de habitantes desse lugar também farão parte da composição. Pode-se considerar aqui a definição de memória coletiva de Halbwachs (1990), para quem as memórias individuais são pontos de vista da memória coletiva, já que ao registrar sua memória, ao evocar seu passado, cada ser sempre recorrerá às lembranças dos outros. Nora declara em relação a isso que “[...] a memória emerge de um grupo que ela une, o que quer dizer, como Halbwachs o fez, que há tantas memórias quantos grupos existem, que ela é, por natureza, múltipla e desacelerada, coletiva, plural e individualizada” (NORA, 1993, p.9).
Entende-se, assim, que não é possível criar um lugar de memória que sirva unicamente como espaço de recordação para um indivíduo. Cada ser precisa que suas memórias sejam validadas também pelas lembranças do outro. A partir da relação do eu com a alteridade é que se forma a identidade particular de cada um, tendo como suporte a veracidade dos fatos comprovada pelo discurso do alheio. Dessa forma, faz-se necessária a função da memória coletiva como meio corroborador de uma memória individual, como suporte para a veracidade dos fatos individuais.
Também, pode-se dizer que percorremos as cidades de Eduardo e de Antonieta através da intensa descrição feita por Sabino. Conseguimos andar através dela. Toda a descrição das cidades é reflexo das imagens que o próprio escritor em seu ofício constrói:
[...] a cidade é imagem do pensamento, imagem também do inconsciente e, como o pensamento ou o inconsciente, deve ser lida e interpretada. A cidade se torna escrita a ser decifrada e o texto – em particular o texto sobre a cidade! – se transforma, por sua vez, numa paisagem a ser percorrida (ARAGON, 1996, p. 125).
A descrição das cidades em relação à mudança ocorrida nela, e também a escrita sobre a mudança de casas por parte de Eduardo – da casa da mãe, a primeira origem, para a casa da mulher, a outra origem –, feita por Fernando Sabino, é importante para a formação do indivíduo. Na primeira casa ele é um menino, vive sua infância e adolescência nela. E quando está adulto, ele vai para a outra casa, a casa da mulher. Assim, a descrição da experiência de Eduardo com o meio no qual vive e, num segundo momento, com um outro meio – seus sentimentos com o espaço e consigo mesmo – pode caracterizar esta narrativa como romance de formação. Ou seja, este seria aquele
[…] romance que narra e analisa o desenvolvimento espiritual, o desabrochamento sentimental, a aprendizagem humana e social de um herói [Bildungsroman]. [...] [de] um adolescente ou jovem adulto que, confrontando-se com o seu meio, vai aprendendo a conhecer-se a si mesmo e aos outros, vai gradualmente penetrando nos segredos e problemas da existência, haurindo nas suas experiências vitais a conformação do seu espírito e do seu caráter (AGUIAR E SILVA, 1973, p. 308).
As cidades – a natal e a outra – se fazem componentes essenciais na aprendizagem e na formação do caráter de Eduardo. As mesmas são fundamentais no desenvolvimento, na sua identificação ou não com o meio, na relação com o outro espaço, no conhecimento de si e do outro e têm consequências para a formação enquanto homem. Ainda segundo Aguiar e Silva (1973), “[…] no Bildungsroman, o herói, permanecendo no seu meio natural – social e profissional –, combate por um fim que ele entrevê ou ao qual ele próprio se propôs e, ao agir assim, forma-se” (p. 308). No caso de Eduardo isso se dá nas cidades em que viveu.
Além de caracterizar a narrativa de cidades de Fernando Sabino como um romance de formação, também se pode dizer que Sabino traça um paralelo entre o interior e o urbano, ao transmitir uma imagem de Belo Horizonte como um lugar pacato, simples, em desenvolvimento – uma cidade do interior do Brasil – e uma imagem do Rio de Janeiro, com seus prédios altos, e vida movimentada – uma metrópole já desenvolvida. Ainda, o autor também descreve mudanças ocorridas em Belo Horizonte, atentando para o aspecto desenvolvimentista ocorrido em muitas cidades brasileiras após a metade do século XX, fase coincidente com a época de escritura do romance.
Pechman (2002), ao fazer um comparativo entre a escrita da cidade nos romances de Joaquim Manuel de Macedo e Manuel Antônio de Almeida, diz que quer:
[...] mostrar como eles se aproximam no sentido de dotar o leitor de instrumentos de leitura da nova realidade que a cidade mostrava ser. Embora com visões diferentes da realidade no plano da configuração de uma “urbanidade”, ambos os autores se aproximam do “projeto” de levar o leitor a passear pela cidade, preparando-o para assumir sua identidade urbana (p. 199).
Seguindo-se nesta linha de análise de Pechman, pode-se dizer que Sabino, em toda a sua narrativa das cidades, também leva o leitor a passear pela cidade, também consegue transmitir essa identidade urbana da qual o autor fala. Lugares como o clube, a faculdade de Direito, o jornal, a praça, o banco da praça, no banco de sempre: o coreto vazio, o busto de D. Pedro II, o repuxo no lago, e fatos como a agitação pelas ruas, prédios novos, gente andando para lá e para cá, como se realmente tivesse urgência de ir a qualquer parte, os elevadores que funcionavam todo tempo, são exemplos da urbanidade em Fernando Sabino.
Da mesma forma, Pechman (2002) nos diz que:
[...] ao fazerem seus personagens passearem pela cidade, o que os narradores estão proporcionando a esses protagonistas é nada menos do que tirá-los da esfera da convivência familiar, privada, para fazê-lo entrar na esfera pública. Esfera pública não no sentido de circulação pelo espaço público, mas de conquista do direito à fala, num país onde tão poucas vozes vinham à tona para se exprimir. E assim, nas estripulias e passeios pela cidade de Leonardos, Agulhas, Garatujas e Simplícios, descobrimos... sua voz! E como quem tem voz vocifera, descobrimos mais uma coisa: que, ao abrirem caminho para a esfera pública pela fala, esses personagens revestem a cidade como o estatuto da política, na medida em que quem tem voz faz sua “inscrição simbólica na polis”, pois o exercício da sociabilidade na esfera pública supõe a palavra como enunciadora do pacto social [...] Dessa maneira, de passeio em passeio, de fala em fala, esses personagens vão forjando, dentro de uma estratégia, estetizante, uma consciência urbana que equivale a uma segunda natureza e que é puro artifício, fruto da razão. Dessa estratégia estetizante nasce uma imagem da cidade que, informada pela linguagem da política, institui o nascimento do cidadão como artífice e sujeito da cidade. Como tal, o cidadão passa a ser portador de uma nova racionalidade política [...] A partir daí, o espaço da cidade passará a ser descrito não mais como o palco dos “acontecimentos” fortuitos, mas daquelas praxis que instituirão a esfera pública. A cidade, que até então não passava de motivo para o desfile de quadros de costumes, através dos quais se ensaiava a ética da convivência, na medida do surgimento de uma esfera pública, cristaliza-se em um espaço público atravessado pela linguagem da política (p. 202).
Parece que Sabino, ao descrever a vida de Eduardo em duas cidades, com a forte ruptura da primeira para a segunda, está na verdade descrevendo costumes na primeira parte do romance, na qual descreve fatos corriqueiros da vida de Belo Horizonte, sem que Eduardo interfira na vida pública e faz o que Pechman chama de desfile das coisas cotidianas.
Ao contrário, ao fazer Eduardo romper com Belo Horizonte e entrar em conflito com as coisas e os acontecimentos, ao fazer dele um genro de ministro e um funcionário de jornal, ele como que dá voz ao personagem e o faz interferir na vida pública, como nos romances de cidade com uma voz política, pública, do homem urbano.
7. Belo Horizonte e Rio de Janeiro: o encontro marcado
Nesta leitura do romance O Encontro Marcado, percebe-se a relação de Eduardo com o lugar de origem, sua primeira origem – a cidade de Belo Horizonte, a casa, o quintal, a mãe, a água. Relação esta bastante intensa, de uma identidade construída através dela. A casa como o lugar familiar de Eduardo. O quintal como o espaço das descobertas, brincadeiras e também, da posse. A mãe como origem, assim como a cidade é a origem. A mãe como porto seguro, porque a origem é sempre um porto seguro, é um lugar familiar, conhecido. A água como o lugar em que Eduardo recupera um pouco de inocência e de naturalidade, lugar em que pode controlar-se e controlar as coisas à sua volta.
Forte é também a relação do personagem Eduardo com outra cidade que demarca um recomeço de vida para ele, se constituindo como outra origem. Nesta cidade – a cidade do Rio de Janeiro – ele constrói uma nova vida, um novo lugar com sua mulher, Antonieta. Sua adaptação com a nova cidade leva certo tempo, visto que ele precisa desfazer-se das coisas da primeira origem e refazer amizades, descobertas, na nova cidade.
Considera-se aqui que, através da memória, todo o passado de Eduardo retorna à sua mente, ocupa sua consciência e, por vezes, faz com que ele viva em função de suas lembranças. O desejo de voltar no tempo, de reviver certos momentos, de voltar ao passado, teima em ocupar totalmente o pensamento de Eduardo.
O sentimento de não pertença aflora quando Eduardo encontra a cidade mudada, o que é natural, é preciso que as mudanças ocorram. Quando retorna a Belo Horizonte, a nova imagem da cidade se choca com a imagem congelada na sua memória. A tristeza é imensa. Mas a mudança se faz necessária de acordo com as necessidades dos habitantes do lugar.
Pechman nos fala sobre os diferentes tipos de escrita literária, nos fala em personagens que refletem a vida familiar, privada, em contraposição à vida pública, na qual os personagens adquirem direito de fala, adquirem uma voz que cria uma consciência urbana. Assim, pensando-se nestes dois tipos de literatura, pode-se XXXX
Ainda pode-se pensar na questão da busca da identidade pessoal, uma identificação do eu, empreendida por Eduardo nos lugares em que cresceu e viveu – as cidades de Belo Horizonte e Rio de Janeiro – descrita no romance O Encontro Marcado, bem como em outros personagens cujo trajeto gira em função da busca da identidade, nesse modo contemporâneo de expressar a busca de uma identidade nacional descrita em tantos livros.
O Encontro Marcado mostra Eduardo como alguém que quer ter alguma coisa como sua, que busca controlar algo, que encontra na casa um porto seguro, que encontra na mãe um porto seguro, bem como na água, que é embalado pela água – como o fora pela mãe –, que conhece outros lugares, que aprende a estar bem no seu novo lar, sua nova casa. Este romance da literatura contemporânea brasileira revela Eduardo como um indivíduo que busca uma identidade dentro de uma cidade, um espaço delimitado.
De maneira análoga, muitos romances de literatura contemporânea, quer brasileira ou não, revelam indivíduos que buscam não só uma identidade dentro de uma cidade, dentro de um espaço menor, como também indivíduos que vivem em função da construção de uma identidade dentro de um espaço muito mais amplo, um lugar no qual os conflitos também são vários e de certa forma semelhantes aos vividos por Eduardo em sua busca. Esses personagens buscam uma identidade nacional, de tal forma a construir um eu pátrio.
Assim, é possível pensar numa análise comparativa entre o Eduardo revelado no romance de Fernando Sabino – que busca pela identidade pessoal, pela construção de um eu, pela construção do corpo do homem – com os romances que revelam personagens em busca da construção de uma identidade nacional, o corpo da nação, como os vários da literatura africana, estudados durante a realização deste curso de pós-graduação em Letras.
Além de tudo isto, pode-se dizer que as possibilidades de um estudo comparatista entre estas questões e outras ainda, do romance de Fernando Sabino, são profundamente amplas e revelam-se possíveis dentro dos estudos de Literatura Comparada.
8. Referências
A LOVE SONG FOR BOBBY LONG. Direção: Shainee Gabel. Intérpretes: John Travolta, Scarlett Johansson, Gabriel Macht e outros. 1 dvd (120 min), color. Produzido por: Sony Pictures, 2004.
ARAGON, Louis. O camponês de Paris. Tradução de Flavia Nascimento. Rio de Janeiro: Imago Ed., 1996.
BACHELARD, Gaston. A Água e os Sonhos: ensaio sobre a imaginação da matéria. Tradução Antonio de Pádua Danesi. São Paulo: Martins Fontes, 1989.
BACHELARD, Gaston. A Poética do Espaço. Tradução Antonio de Pádua Danesi. São Paulo: Martins Fontes, 1988.
BARROS, Myriam Moraes Lins de. A cidade dos velhos. IN: VELHO, Gilberto (org). Antropologia Urbana. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999.
BOSI, Ecléa. Memória e Sociedade: lembranças dos velhos. 13ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
BRANDÃO, Carlos Antônio Leite. A Formação do Homem Moderno Vista Através da Arquitetura. 2 ed. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1999.
CALVINO, Ítalo. As Cidades Invisíveis. (Trad. Diogo Mainardi) São Paulo: Companhia das Letras, 1991.
CANDAU, Jöel. Memória e Identidade. São Paulo: Contexto, 2012.
FISCHER, Luís Augusto. Visitar o Passado, para Viver o Presente. Texto inédito, s.d.
GAGNEBIN, Jeanne Marie. Lembrar escrever esquecer. 34 ed. São Paulo: 2006.
HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. Rio de Janeiro: Vertice, 1990.
LYNCH, Kevin. A Imagem da Cidade. Lisboa: Edições 70.
MAGALHÃES, Maria Cristina Rios (org.). Na Sombra da Cidade. Ensaios: subjetividade e urbanização. São Paulo: Editora Escuta, 1995.
NOGUEIRA JR., Arnaldo. Fernando Sabino. Resumo biográfico e bibliográfico. Disponível em <http://www.releituras.com/fsabino_bio.asp>. Acessado em 24/07/2007.
NORA, Pierre. Entre Memória e História: A problemática dos lugares. Tradução de
Yara Aun Khoury. Projeto História. São Paulo, dez 1993. In: ___. Les lieux de mémoire.
I La République, Paris, Gallimard, 1984. pp. XVIII-XLII.
PECHMAN, Robert Moses. Cidades Estreitamente Vigiadas: o detetive e o urbanista. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2002.
PELBART, Peter Pál. A Vertigem por um Fio: políticas da subjetividade contemporânea. São Paulo: Iluminuras, 2000.
SABINO, Fernando. O Encontro Marcado. 45 ed. Rio de Janeiro: Record, 1984.
SANTOS, Milton. Pensando o Espaço do Homem. 5 ed. São Paulo: EDUSP, 2004.
WILLIAMS, Raymond. O Campo e a Cidade na História e na Literatura. Tradução Paulo Henriques Britto. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
*Texto originalmente publicado na Revista PATRIMÔNIO E MEMÓRIA (UNESP). , v.12, p.155 - 176, 2016. Disponível em <http://pem.assis.unesp.br/index.php/pem/article/view/550>
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